terça-feira, 23 de dezembro de 2008

JOSÉ SARAMAGO, SOBRE...

SEU PROCESSO CRIATIVO

Quando acabo um livro, não tenho qualquer idéia. Fico à espera que ressurja e até hoje, felizmente... Mas, enfim, chegará o dia em que se acabarão as idéias. E quando se acabam as idéias, acaba-se o escritor – se é que o escritor não se acabe antes que se esgotem as idéias.

O 'ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA'

O livro nasceu nas circunstâncias mais prosaicas que se podem imaginar. Estava num restaurante – casualmente estava sozinho – e, de repente, me fiz a pergunta ‘e se todos fôssemos cegos?’... e imediatamente encontrei a resposta, 'nós somos todos cegos'.

A MORTE DAS IDEOLOGIAS COMO IDEOLOGIA E O COMUNISMO

Em primeiro lugar, isso é uma ideologia, está claríssimo. Como seres finitos, não temos condições de declarar a morte de uma coisa ou de outra. Marx nunca teve tanta razão como hoje. Fui convidado para ir ao programa do Bernard Pivot. À certa altura, saiu a pergunta: ‘Como é que você, depois do muro de Berlim e do que se passou na União Soviética, continua a ser comunista?’. E eu, como nunca tinha pensado numa resposta diferente, disse: ‘Pronto, sou comunista, acabou. Sou uma espécie de comunista hormonal. O que é isso, comunista hormonal? É que eu nasci com um hormônio que faz crescer a barba, nasci com um hormônio que, queira ou não queira, faz de mim comunista. Ser comunista é um estado de espírito... E o que aconteceu na União Soviética foi que estavam a governar a União Soviética, pessoas que, desse estado de espírito, não estavam nada, nada aparelhadas. Tinham-no perdido, se alguma vez tiveram’.

A ADAPTAÇÃO DO 'ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA' PARA O CINEMA E A MÁQUINA CINEMATOGRÁFICA CAPITALISTA.

Vamos lá ser sérios. A edição também é uma máquina capitalista. Ou acha que há qualquer coisa fora da máquina capitalista? Fernando Meirelles sabe e pode confirmar que não interferi em rigorosamente nada do seu trabalho. Como não admito que interfiram no meu, também não interfiro no trabalho alheio. Quando eu percebi que havia uma intenção de se respeitar aquilo que o livro dizia e não transformar num objeto de consumo vulgar e grotesco, a partir desse momento, eles tiveram carta branca para fazer o que queriam.
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Trechos retirados da entrevista exibida no programa 'Entrelinhas' de 21.12.2008.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

PASSADOLOGIA

perceba um detalhe do futuro no presente
e o passado
já não foi

o de antigamente

Por Lu Tomé

sábado, 20 de dezembro de 2008

O MAU SAMARITANO



Quantas vezes tenho passado perto de um doente,

Perto de um louco, de um triste, de um miserável,

Sem lhes dar uma palavra de consolo.

Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,

Que outros precisam de mim, que preciso de Deus.

Quantas criaturas terão esperado de mim

Apenas um olhar – que eu recusei.

Por Murilo Mendes, em 'A poesia em pânico'.

Imagem: Salvador Dali - Female figure with head of flowers

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

FINAIS

As coisas não explodem,
Elas definham, apagam-se,

como se apaga da carne a luz do sol,
como escoa a espuma, rápido na areia,

nem mesmo o relâmpago do amor
termina trovejando,

ele morre com o som
de flores definhando feito a carne

de pedra-pome transpirante,
isso é o que tudo configura

até não nos restar nada além
do silêncio que cinge a cabeça de Beethoven.


Derek Walcott
Por Nelson Ascher, em 'Poesia Alheia'

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

...

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranqüilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

[...]

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Por Ricardo Reis* - Fernando Pessoa

*A ausência desse poeta no blogue foi sabiamente constatada pelo atento olhar literário do amigo Norival Leme Jr., a quem agradeço pela sugestão.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Minha vida não é essa hora abrupta...

Minha vida não é essa hora abrupta
Em que me vês precipitado.
Sou uma árvore ante meu cenário;
Não sou senão uma de minhas bocas:
Essa, dentre tantas, que será a primeira a fechar-se.

Sou o intervalo entre as duas notas
Que a muito custo se afinam,
Porque a da morte quer ser mais alta...

Mas ambas, vibrando na obscura pausa,
Reconciliaram-se.

E é lindo o cântico.

Por Rainer Maria Rilke, em 'Alguns poemas e cartas a um jovem poeta'

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Acontecido

Como quem se banhasse
no mesmo rio
de águas repetidas,
outra vez era setembro
e o amor tão novo.
Iguais, teu hálito mascavo
e minha mão inquieta.
Novamente o quarto,
a praça vista da janela,
teu peito.
Depois eu era só - vê -
sob a chuva miúda daquele dia.

Por Eucanaã Ferraz, em Martelo

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

UMA DAMA SEMPRE SABE QUANDO DEVE PARTIR.

Fala da personagem Sipsey (Cicely Tyson),
no fime 'Tomates Verdes Fritos'.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

ALÉM-TÉDIO

Nada me expira já, nada me vive
— Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…

Por Mário de Sá-Carneiro

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Pensamentos de Montesquieu

O estudo tem sido para mim o remédio soberano contra os desgostos da vida, e jamais tive tristeza de que uma hora de leitura não me tenha livrado.

Se eu soubesse de uma coisa útil para minha nação que fosse destruidora para outra, não a proporia ao meu príncipe, porque sou homem antes de ser francês, (ou então) porque sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso.

Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, eu a expulsaria do meu espírito. Se soubesse de alguma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, eu tentaria esquecê-la. Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha pátria, e que fosse prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu a consideraria um crime.

Eu dizia: “Não faço parte das vinte pessoas que conhecem essas ciências em Paris, nem das cinquenta mil que crêem conhecê-la”.

Acordo de manhã com uma alegria secreta; vejo a luz com uma espécie de arrebatamento. Todo o resto do dia fico contente.

Jamais vi correrem lágrimas sem me enternecer.

Perdoo facilmente, pela razão de que não sei odiar. Parece-me que o ódio é doloroso. Quando alguém quis se reconciliar comigo, senti minha vaidade lisonjeada e parei de ver como inimigo um homem que me prestava o serviço de me dar uma boa opinião de mim.

Quando se esperou que eu brilhasse numa conversa, jamais o fiz. Prefiro ter um homem de espírito a me apoiar do que muitos tolos a me aprovar.

Alguém me reprochou de ter mudado a seu respeito. Eu lhe disse: “Se é uma mudança para você, é uma revolução para mim”.

Retirei de uma seleção traduzida por Antonio Cicero. Ele explica que nas obras de Montesquieu não constam esses pensamentos, citando o próprio: "São idéias que não aprofundei" "e que guardo para sobre elas pensar quando surgir a ocasião". Menciona a seguinte referência bibliográfica: MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. "Mes pensées". In Oeuvres complètes. Vol.1. Org. p. Roger Caillois. Paris: Gallimard, 1949.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

*

Acredito sim que penses o que dizes agora;
Mas aquilo que decidimos, não raro violamos.
O propósito não passa de servo da memória,
De nascer violento mas fraca validade,
E que agora, como fruta verde, à arvore se agarra,
Mas quando amadurecida, despenca sem chacoalho.
Imprescindível é que nos esqueçamos
De nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido.
Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos,
A paixão cessando, o propósito está perdido.

Shakespeare, em Hamlet (ato III, cena 2, linhas 181-90)
Por Eduardo Giannetti

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Montaigne, sobre 'ser'

Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal, avarento, pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra.

Montaigne
Por Sérgio Milliet, em 'Ensaios de Montaigne'

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Flaubert e Clarice...

Seu par de olhos não basta; o quadro visto através deles, por si mesmo, é uma pobre coisa, pois ela só pode ver o que sua mente é capaz de apreender; e isso tampouco lhe faz justiça, uma vez que ela mesma, em grande parte, é a criação das coisas que a cercam.
Por Gustave Flaubert, em 'Madame Bovary'
*
*
Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes. Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa compreensão, pois viver é somente a altura a que posso chegar - meu único nível é viver.
[...]
Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E, sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.
Por Clarice Lispector, em 'A Paixão Segundo G.H.'
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Triple Self-Portrait, por Norman Rockwell,
pintor americano - 1894-1978

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O HAVER

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio

[...]

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

[...]

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido

[...]

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

[...]

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

[...]

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Por Vinícius de Moraes, em 'Jardim Noturno'

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Quadra

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

Por António Aleixo

terça-feira, 18 de novembro de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 8)

Ele (...) era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte - assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível (...) Eu queria que ele gostasse de mim.
(...)
Via os olhos dele, produziam uma luz. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele(...) - "Você também é animoso..." - me disse. Amanheci minha aurora.
(...)
Muita coisa importante falta nome.
(...)
Por que foi que eu conheci aquele Menino? (...) Sonhação - acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino eu pensava, eu acho que. Mas, para que? por que?
Por João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

INVERNO

Choveu tanto sobre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a força
de buscar estradas antigas.

Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sobre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!

Pode ser que o sol se levante
sobre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.

Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?

A primavera foi tão clara
que se viram novas estrelas,
e soaram no cristal dos mares
lábios azuis de outras sereias.

Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e seda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sede.

Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.

Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não pôde achar nenhum motivo...

Por Cecília Meireles, em 'Palavras e Pétalas'
Organização: Antonio Carlos Secchin

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

PERPLEXIDADE

Não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.

Por Antonio Cicero, em 'A Cidade e os Livros'.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O rapaz e a moça trocaram um olhar em que faiscaram jóias de diversos tamanhos. A maior delas era a cumplicidade.

Por Marçal Aquino, no conto 'Dia dos Namorados'
(do livro 'Geração 90: Manuscritos de Computador' -
Organização Nelson de Oliveira)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Por vezes, não raro...

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

Por Eucanaã Ferraz, em Desassombro

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.


Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.


Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!


Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.


Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.


Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!


Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...


Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!


Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...


Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.


Por Álvaro de Campos, em Poesia de Álvaro de Campos
Fernando Pessoa

terça-feira, 28 de outubro de 2008

*

Misturada entre as pedras
preciosas do mundo
Com um simples olhar
A você não confundo

Por Cartola, em 'Festa da Vinda'
Alumbramento 'desperto' pelo amigo e músico
Thiago França, a quem agradeço pela dica.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

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ESTOU SÓ, arrumo a flor de cinzas
no vaso cheio de maduro negrume. Boca-irmã,
falas uma palavra que sobrevive diante das janelas
e escala muda o que sonhei, em mim.

Eis-me na flor da hora murcha
e poupo uma resina para um pássaro tardio:
ele traz o floco de neve na pluma vermelho-vida;
o grãozinho de gelo no bico, e atravessa o verão.

Paul Celan
Por Claudia Cavalcanti, em 'Cristal'.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Nosso Tempo (1ª Parte)

I
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.


Por Carlos Drummond de Andrade, em 'A Rosa do Povo'

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

cor de Rosa (Fragmento im-possível)

Guimarães, novamente. Agora, um conto. Como de costume, encontram-se belos e encantadores fragmentos, mas, dessa vez...
Bem, se não exibisse o conto, inteiro, àqueles que porventura tiverem disposição para leitura, sentiria remorso. Primeiro, porque é curto e segundo, porque é precioso. Destaquei algumas frases (para quem for impaciente), mas a história, em si, é uma prece.
... Porque ninguém precisa acorrentar-se ao passado e à lógica das coisas. As histórias podem ser reinventadas...
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*
DESENREDO
Do narrador a seus ouvintes:
- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes, bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se também que a ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e plena amplitude.
Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – idéia inata. Entregou-se a remir, a redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e de amar a gente não de desfaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o anatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil quanto refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada em realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeitos. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
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Por João Guimarães Rosa, em 'Tutaméia'.

Uma criança não reza, ela é uma oração.

Frase: Walt Whitman (1819-1892), poeta norte- americano (retirei da revista Caras).
Foto: Das minhas sobrinhas, porque sou tia-coruja...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

SONETO

Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Por Mário de Andrade

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Ética a Nicômaco (Fragmentos 3)

Ora, os homens corajosos agem tendo em vista a honra, mas a paixão os ajuda, ao passo que as feras agem sob a influência da dor (atacam porque foram feridas ou por estarem assustadas, já que nunca se aproximam de pessoas porventura perdidas na floresta). Não são corajosas, pois, impelidas pela dor e pela paixão, atiram-se aos perigos sem calcular os riscos. Se não fosse assim, até os asnos seriam corajosos quando estão famintos, pois nessa situação nem as pancadas conseguem afastá-los do pasto; e igualmente a luxúria leva os adúlteros a cometerem muitos atos audaciosos. Todavia não são corajosas essas criaturas que são impelidas para o perigo pelo sofrimento ou a paixão.
(...)
O homem magnânimo não se expõe a perigos por motivos triviais, nem tem amor pelo perigo, pois dá valor a poucas coisas; todavia, enfrentará os grandes perigos, e nesses casos não se deterá com a preocupação de salvar sua vida, sabendo que há condições em que ela não é digna de ser vivida.
(...)
Ele também não é dado a conversas fúteis; não fala nem de si mesmo nem dos outros, pois não lhe interessam nem os elogios que lhe possam fazer nem as censuras dirigidas aos outros; nem é amigo de elogiar nem de falar mal dos outros, nem mesmo dos seus inimigos, salvo por desdém. Quanto às coisas que ocorrem inevitavelmente ou que são de pouca importância, é, entre todos, o menos propenso a lamentar-se ou a pedir favores, pois só os que dão muita importância a tais coisas agem dessa maneira.
(...)
Além disso, é próprio de um homem magnânimo um andar lento, uma voz profunda e uma entonação uniforme, pois aquele que se preocupa com poucas coisas não é apressado, nem é agitado o homem para quem alguma coisa é grande, enquanto a voz estridente e o andar precipitado são frutos da pressa e da agitação.
(...)
A magnanimidade relaciona-se com a honra em grande escala.
Aristóteles
Por Pietro Nassetti

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O Ator

Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.

Por Eucanaã Ferraz, em 'Cinemateca'

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sobre a Informação

Com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação (...) a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa: “Para meus leitores, o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante do que uma revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira por uma comunicação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com os espírito da narrativa. Se a arte da narrativa hoje é rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres de histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras, quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa consiste em evitar explicações. (...) [O leitor] Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.
.
Por Walter Benjamin (1892-1940) - Filósofo, crítico literário, membro da Escola de Frankfurt
.
.
.
"- Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr.
E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!
Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff.
-Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia."
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Por Eça de Queirós, em 'A Cidade e as Serras'

terça-feira, 7 de outubro de 2008

ÁRVORE ADENTRO

Cresceu em minha fronte uma árvore.
Cresceu para dentro.
Suas raízes são veias,
nervos suas ramas,
Sua confusa folhagem pensamentos.
Teus olhares a acendem
e seus frutos de sombras
são laranjas de sangue,
são granadas de luz.
.........................Amanhece
na noite do corpo.
Ali dentro, em minha fronte,
a árvore fala.
.................Aproxima-te. Ouves?

Octavio Paz
Por Antônio Moura

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

DEPOIS DUM SONHO

Não deixaste o deserto mas

árvores na casa Em sonho és

o sedutor arbusto reflectindo

para sempre o meio-dia O sol

porém desfaz-se quando as pálpebras

num ardor se entreabrem e te ocultas

nos ângulos do quarto Ausente

és pois o centro

feroz da minha vida transitas

como serpente fria no ventre

contraído escondes-te na

floresta que sem cessar se expande

onde dormíamos E erras

nos limites duma casa

destruída por raízes


Por Gastão Cruz

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?

... nós que guardamos o grito em segredo inviolável.
Por Clarice Lispector, em 'A Paixão Segundo G.H.'

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sobre sonhos...e luxo.

Sinhá Vitoria desejava possuir uma cama igual à de seu Tomas da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.
(...)
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinhá Vitoria respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinhá Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinhá Vitoria ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado. Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da casa.
(...)
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu am boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Por Graciliano Ramos, em Vidas Secas

terça-feira, 30 de setembro de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 7)

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores e diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
João Guimarães - Grande Sertão: Veredas

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Quase

O Beijo - Gustav Klimt

Por uma estranha alquimia

(você e outros elementos)

quase fui feliz um dia.

Não tinha nem fundamento.

Havia só a magia

dos seus aparecimentos

e a música que eu ouvia

e um perfume no vento.

Quase fui feliz um dia.

Lembrar é quase promessa,

é quase quase alegria.

Quase fui feliz à beça

mas você só me dizia:

“Meu amor, vem cá, sai dessa”.

Por Antonio Cícero, em Guardar

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Rapaz

Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.

Por Luís Miguel Nava

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Prisão da Palavra

Olho redondo entre as barras.

Pálbebra de animal cintilante
rema para cima,
libera um olhar.

Íris, nadadora, sem sonhos e triste:
o céu, cinza-coração, deve estar próximo.

Inclinada, no bico de ferro,
a limalha fumegante.
No sentido da luz
adivinhas a alma.

(Se eu fosse como tu. Se fosses como eu.
Não estaríamos
sob um mesmo alísio?
Somos estranhos.)

Os ladrilhos. Por cima,
uma junto à outra, as duas
poças cinza-coração:
dois
bocados de silêncio.

Paul Celan
Por Cláudia Cavalcanti, em 'Cristal'.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

...porque promessa é dívida!

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Por Vinícius de Moraes - Ausência

sábado, 13 de setembro de 2008

Canção

No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

Por Cecília Meireles

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Aristóteles, sobre a amizade * Ética a Nicômaco - Fragmentos 2

A amizade perfeita é aquela que existe entre homens que são bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos. Dessa forma, aqueles que desejam o bem aos seus amigos por eles mesmos são amigos no sentido mais próprio, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não por acidente. Por essa razão, sua amizade durará, enquanto essas pessoas forem boas, e a bondade é uma coisa muito duradoura. E cada uma dessas pessoas é boa em si mesma e para o seu amigo, pois os bons são bons em absoluto e reciprocamente úteis.
[...]
Mas é natural que tais amizades sejam raras, pois homens assim também são raros. Além disso, uma amizade dessa espécie exige tempo e intimidade. Como diz o provérbio, as pessoas não podem conhecer-se mutuamente enquanto não tiverem “consumido muito sal juntas”; e tampouco podem se aceitar como amigos enquanto cada um não parecer digno da amizade ao outro, e este não lhe houver conquistado a amizade.
[...]
Apenas a amizade entre os bons, e só ela, é invulnerável à calúnia, pois não damos ouvidos facilmente ao que qualquer um diga a respeito de alguém que durante muito tempo foi posto à prova; e é entre os bons que encontramos a confiança do sentimento expresso pelas palavras “ele nunca me seria desleal”, e tudo o mais que se espera de uma verdadeira amizade.
Aristóteles
Por Pietro Nassetti

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Gilles Lipovetsky, em palestra

"É necessário que a gente invente uma pedagogia das paixões - oferecer alvos às pessoas, objetivos capazes de mobilizar suas paixões em outro lugar que não seja o universo das marcas e do consumo. Outros desejos, outros centros de interesse - esportes, música, dança, arte, um empreendimento, outras paixões".
*
"Temos que inventar novos modelos de educação e de trabalho, que permitam às pessoas encontrar um modelo pessoal, que não seja regido pelo consenso em paradoxos de consumo".
*
"Exemplo de paradoxo: Os corpos são livres, mas a miséria sexual se mantém".
*
"A sociedade hipermoderna não deve ser destituída; ao menos ela tem uma virtude: legitimou aquilo que as tradições milenares se esforçam para mostrar".
*
*
Gilles Lipovetsky é filósofo francês e professor. Possui atualmente, cerca de 63 anos e diversos livros publicados. Dentre eles, 'Sociedade da Decepção', 'Era do vazio: ensaios sobre o idividualismo contemporâneo', 'Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas'.
*
Sociedade da Decepção
O livro trata de uma sociedade que vive de excessos, que tem mania de consumo e que ao mesmo tempo desperdiça tudo que é possível. Gilles Lipovetsky, criador do conceito de hipermodernidade para definir os tempos de hoje, explica porque a sociedade vive um momento tão triste, com elevados índices de suicídios, de depressão e de dependências diversas. Segundo ele, o enfraquecimento da religião é um dos principais fatores da decepção atual. Sem fé as pessoas não têm referenciais e ao primeiro choque, caem num abismo de desamparo e frustrações, explica o autor. Essa era do consumismo modificou muito mais a vida da humanidade do que todas as correntes filosóficas do século XX reunidas, tanto para o bem quanto para o mal. Nunca fomos tão livres social e politicamente, e tão submissos (ao consumismo, por exemplo), analisa Lipovetsky.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Olhos de ressaca

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que me arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.

Por Machado, em Dom Casmurro

terça-feira, 2 de setembro de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 6)

Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.
Por João Guimarães - Grande Sertão: Veredas

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Entre partir e ficar

Entre partir e ficar hesita o dia,
enamorado de sua transparência.

A tarde circular é uma baía:
em seu quieto vai e vem se move o mundo.

Tudo é visível e tudo é ilusório,
tudo está perto e tudo é intocável.

Os papéis, o livro, o vaso, o lápis
repousam à sombra de seus nomes.

Pulsar do tempo que em minha têmpora repete
a mesma e insistente sílaba de sangue.

A luz faz do muro indiferente
Um espectral teatro de reflexos.

No centro de um olho me descubro;
Não me vê, não me vejo em seu olhar.

Dissipa-se o instante. Sem mover-me,
eu permaneço e parto: sou uma pausa.

Octavio Paz
Por Antônio Moura

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Valéry, sobre o prejuízo da modernidade

O tempo livre que tenho em mente não é o lazer tal como normalmente entendido. O lazer aparente ainda permanece conosco, e, de fato, está protegido e propagado por medidas legais e pelo progresso mecânico. As jornadas de trabalho são medidas, e a sua duração em horas, regulada por lei. O que eu digo, porém, é que o nosso ócio interno, algo muito distinto do lazer cronometrado, está desaparecendo. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquela ausência sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam, ao passo que o ser interior é de algum modo liberado de passado e futuro, de um estado de alerta presente, de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Nenhuma preocupação, nenhum amanhã, nenhuma pressão interna, mas uma forma de repouso na ausência, uma vacuidade benéfica que traz a mente de volta à sua verdadeira liberdade, ocupada apenas consigo mesma. Livre de suas obrigações para com o saber prático e desonerada de qualquer preocupação sobre o porvir, ela cria formas tão puras como o cristal. Mas as demandas, a tensão, a pressa da existência moderna perturbam e destroem esse precioso repouso. Olhe para dentro e ao redor de si! O progresso da insônia é notável e anda pari passu com todas as outras modalidades de progresso.
Paul Valéry, em 1935
Por Eduardo Giannetti

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Idéias preciosas de Górgias

O Tratado do Não-Ser organiza-se em três teses: nada existe; mesmo se o ser existisse, então seria incognoscível; e se fosse cognoscível, então este conhecimento do ser seria incomunicável a outrem.
Para Górgias, as coisas não são mais do que não são. Ainda que o ser existisse, não podia ser nem gerado, nem não gerado. Mas, mesmo se um tal ser existisse, as coisas seriam incognoscíveis, pelo menos para nós. As coisas que vemos e ouvimos existem porque são representadas. Ora, pode representar-se o que não existe. Portanto, a representação do ser não nos proporciona o ser e o conhecimento é impossível. Contudo, tomamos conhecimento pela percepção e comunicamo-lo pela linguagem. Mas a linguagem não transmite a experiência pela qual o real se nos dá. Este é incomunicável, porque as coisas não são discursos.
* Górgias - filósofo grego, anterior a Platão, e professor de retórica
Texto extraído do site:

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Meu sonho

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar ?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

Por Cecília Meireles

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

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"...ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada".

Por Clarice Lispector - no conto Preciosidade

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Canção do Berço

O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos
[de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e não é importante, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto do leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'