quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

cor de Rosa (curiosidades)

"Não me envergonho em admitir que Grande Sertão Veredas me rendeu um montão de dinheiro. A esse respeito, quero dizer uma coisa: enquanto escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito, porque eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela. Como sou um fanático da sinceridade lingüística, isso significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele".

Guimarães Rosa

http://www2.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/guimaraesrosa2.htm

cor de Rosa (curiosidades)

Em 38, Guimarães Rosa é nomeado consul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 42. Durante a Segunda Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.

http://www2.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

POEMINHA SHAKESPEARIANO

"O mundo é um palco"
Me disseram.
Mas vejam o papel
Que me deram!

Por Millôr Fernandes, em 'Papáverum Millôr'.
>>Dica do amigo Agamenon

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Infelicidade é questão de prefixo.


(...) e que viver é um rasgar-se e remendar-se.

Por Guimarães Rosa, no conto 'João Porém, o criador de perus', de Tutameia
Foto: Tom Alves
www.tomalves.com.br / www.flickr.com/photos/tombh/

Setembro

Nunca mais será setembro,
nunca mais a tua voz dizendo
nunca mais, eu lembro,

nunca mais, eu não esqueço,
a pele, nunca mais,
o teu olhar quebrado,

dividido, vou esquecê-lo,
é o que te digo, nunca mais
a minha mão no teu sorriso,

a tua voz cantando,
vou apagá-la para sempre,
e os nossos dias, setembro, lembro

bem, dentro a tua voz dizendo não
(ouço ainda agora), como se quebrasse
Um copo, mil copos, contra o muro.

Rasgarei o que não houve, o que seria,
mesmo que tudo em mim me diga não
(e diz), mas é preciso.

Como não se pensa mais um pensamento,
quero, prometo:
nunca mais será setembro.


Por Eucanaã Ferraz, em Cinemateca.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cor de Rosa - Pílulas de Tutameia

Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. (...) Para trás, o que passei, foi arremedando e esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração.

A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor.

Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras.

E o governo da vida?

Experimentei finuras novas – somente em jardim de mim, sozinha.

Ri muito útil ultimamente.

Tudo o que é bom faz mal e bem.

Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível. De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades?

Fragmentos do conto - 'Esses Lopes'

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Tudo, para mim, é viagem de volta.

Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas. Suspiros. Declaro, agora, defino. O senhor não me perguntou nada. Só dou resposta ao que ninguém me perguntou.

A gente espera é o resto da vida.

Decido. Pergunto por onde ando. Aceito, bem-procedidamente, no devagar ir longe. Voltar, para fim de ida. Repenso, não penso. Dou de xingar meu falecido, quando as saudades me dão. Cidade grande, o povo lá é infinito.

do conto - 'Antiperipléia'

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Ou começava a interrogar-se, desestruturando-se sua defesa. Frescura, quase felicidade; e espinhos perseverantes.

Do nada, nada obteve.

Tudo, quanto há, é saudade alternando-se com novidades: diagrama matemático em calor de laboratório. O diabo não é inteiro nem invento.

Foram felizes e infelizes, misturadamente.

do conto - 'A vela ao Diabo'

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Mas o mundo não é um remexer de Deus? – com perdão, que comparo. (...) Olhos põem as coisas no cabimento.

Agora, de tão firme ele cambaleava, pelos ses e quases, tirado de qualquer resolver.

(...) Ele, vem, me espreitou nos centros, ele suspirava pelos olhos.

Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e anda de costas.

De lá a gente saiu, arrastando eu aquele peso alheio, paixão, de um coração desrespeitado.

Não há como um tarde demais – eu dizendo – porque aí é que as coisas de verdade principiam.

do conto - 'Curtamão'

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Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

O trágico não vem a conta-gotas.

Todo fim é impossível? (...) O tempo é engenhoso.

Sempre vem o imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se.

Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. (...) Era o seu amor meditado, à prova de remorsos.

A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? (...) incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e de amar a gente não se desfaz.

(...) operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta.

Trêz vezes passa perto da gente a felicidade.

do conto - 'Desenredo'

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Só perigos o esperassem, repelia pensamentos, ninguém está a cobro da doideira de si e dos outros.

(...) por própria justa defesa, é quando a gente se estraga.

Em mente de olhos ele aprendia o caminho.

Teve de querer rir simples.

do conto - 'Droenha'

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Pois era assim que era, havendo muita realidade. Que faziam estas almas?

Nenhuma delas ganhara da vida jamais o muito – que ignoravam que queriam – feito romance, outra maneira de alma.

Deus é quem sabe o por não vir. A gente se esquece – as coisas lembram-se da gente.

Falava-se de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem-querer sem descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre fingia que passava.

Sua saudade - tendência secreta - sem memória.

Sua saudade cantava na gaiolazinha; não esperar inclui misteriosas certezas. [...] “Todo dia é véspera...”

do conto - 'Arroio das Antas'

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Por João Guimarães Rosa, em Tutameia (Terceiras Histórias). Editora Nova Fronteira

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Coisas que são

Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade.
Condillac começa o seu livro célebre, «Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações». Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava é a que percorro e é a minha.
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego

O coração, se pudesse pensar, pararia.

Por Bernardo Soares- heterônimo de Fernando Pessoa,
em ' Livro do Desassossego'

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Vem

Porque os dias quebravam contra sua cara,

porque trocara as horas por nada,
quis o espinho extremo.

Mas, sobre encontrá-lo, ninguém

nem nada respondia. Saberia reconhecê-lo

em meio a tudo? Algum sinal?


Um cisne gravado na testa? Talvez

bastasse, à distância, atentar

nos modos de dobrar

ou desfazer as frases,

[...]

o que fosse
aquilo que faria do acaso


o certo,

até que se manifestasse numa forma

inadiável, que figuraria o fruto de

uma longa matemática. Porque seria assim,

poderia ver na matéria mínima a sua fábrica,

o incêndio


que sobreviria contra a indiferença dos seus dias.

[...]

Mesmo sem vestígios, farejava.
[...]

à boca enchendo-o de inocência e desejo.

Era mais seguro não querer. Mas


envenenara-se com o anseio de que

a cidade desaguasse em alguém, não fosse tão-só

pedras de seus olhos se ferirem. Mais seguro


era cegar as vontades. Cerrados, os olhos

calariam o teatro excessivo dos gestos. Talvez

dormisse. Mas a insônia vinha branca

e ácida e alta. Houve uma vez um comandante

prussiano, recostado ao fundo da poltrona,

[...]

lembrava-se, era mais fácil
deixar a solidão crescer no vento, vir ao quadril,

lembrava-se do conto enquanto seus olhos


erravam pelas avenidas, esperança em pêlo, juízo

em vão, fome de um relance, um fio. Suave,

se ainda soubesse, era beber sem supor alguém


após o drinque, gastar-se só, sem presumir

um abraço à saída do cinema, à saída de
sábado. Mas ele sacrificaria qualquer ponderação

para persistir no engano de seguir

à própria sorte por mundos que semelhavam

estacionamentos abarrotados de frases moles,


blogs, celulares, fazer amigos, impressionar pessoas,

dicionários como se fósforos para queimar o tempo,

o tédio, saudades de quando não vagava devastado


pela espera (pela espora, dizia o conto)

de uma lâmpada após o labirinto,

por aquela presença tão-só pressentida,


mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais.

Tudo (um exagero) escarnecia dele, sequioso de que

regressasse quem nem mesmo houvera

[..]

Canções de amor
foram o seu veneno,


todas à roda da mesma víscera,

da mesma válvula sentimental,

podia senti-la,


sem amores nem romances, sangue

e bomba apenas, como no peito de um bicho,

que é só um bicho. Então, exausto,


sem nenhum grito, deitou-se
sobre a pedra escura da rua, ou da escarpa

mais alta, ou da lua mais miserável e suja.


Esteve ali, parado, manso,

talvez por anos, sem que nada pedisse

ou pretendesse. E era só uma noite


entre as noites, quando despertou agitado

(deve ter sido assim) pela visão de uns lábios,

vinham acesos, na direção dos seus.

Por Eucanaã Ferraz

Do site: http://eucanaaferraz.com.br/sec_poema_mostra.php?poema=83

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

História verídica

A Samyra, quando pequena,

Parecia um despertador

Mas eu acordava antes

Ao ouvir seus passos desengoçados

Fazendo barulho pelo corredor

A picareta pulava diante da porta,

até alcançar a maçaneta

Entrava no quarto e me sacudia

- Acorda, tia!

- Samyra, o que é?

- Vamos para a sala, quero tomar café!

- Samy, é muito cedo, não seja mala...

- Quero tomar café na sala!

E assim começava o meu dia -

Cheio de preguiça e alegria.

Com ternura, a pequena tecia

Doces versos cotidianos,

Paz e doçura para minha poesia

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

*

Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.

De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, pra que nos não tome
Do pulso, e nos arraste.

E vivamos assim,
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis.

Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
‘Scolherrnos do que fomos
O melhor pra lembrar
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.


Por Fernando Pessoa, como Ricardo Reis

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim
.

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'O Corpo'

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A casa materna

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna.

[...]

As coisas vivem como em prece [...]. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente.

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô.

[...]

A casa materna se divide em dois mundos: o térreo onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo, há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roqueford amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta – pois não há lugar mais propício para uma boa ceia noturna. [...] Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe porque queima às vezes uma vela votiva.

[...]

Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

Por Vinícius de Moraes, em ‘Para viver um grande amor’

Coisas que são

O homem que pensa

Tem a fronte imensa

Tem a fronte pensa

Cheia de tormentos.

O homem que pensa

Traz nos pensamentos

Os ventos preclaros

Que vêm das origens.

O homem que pensa

Pensamentos claros

Tem a fronte virgem

De ressentimentos.

Sua fronte pensa

Sua mão escreve

Sua mão prescreve

Os tempos futuros.

Ao homem que pensa

Pensamentos puros

O dia lhe é duro

A noite lhe é leve:

Que o homem que pensa

Só pensa o que deve

Só deve o que pensa.

Poema para Gilberto Amado - Por Vinícius de Moraes, em ‘Para viver um grande amor’

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

RELATÓRIO EM FORMA FECHADA

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam

Por Gastão Cruz, em 'A moeda do tempo'

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Leite, leitura

leite, literatura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Por Paulo Leminski, em 'O ex-estranho'

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Ela se debateria ao longo de toda a vida entre a necessidade de pertencer e a tenaz insistência de manter-se à parte.

Por Benjamin Moser, em 'Clarice,'
Cosacnaif, edição de bolso

Aliás, Drummond escreveu, por ocasião de sua morte:

"Clarice, veio de um mistério, partiu para outro".

[retirado da mesma obra]

*

o dia realiza-se
de propósito contra
todas as hipóteses do não
surgimento do sol
sem tempo
para comparecer
onde vela-se
a logística dos fatos
propõe-se-me
a identidade como
exercício de desap-
ego

Por Ricardo Domeneck, em 'a cadela sem Logos'

NO CORPO

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

Por Ferreira Gullar, em 'Dentro da noite veloz'
José Olympo Editora - 4ª Edição

terça-feira, 21 de junho de 2011

A rua dos cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Por Mário Quintana

sábado, 14 de maio de 2011

Primeiro Parágrafo

“A paixão é um fio de chuva em vidro de janela. Na vida de João Rosa, janelas se sucederam, paixões escoaram, sem rosto nem rasto. Mulheres escorreram como apressadas gotas e se neblinaram, aves cruzando os céus. João Rosa não lembrava de nenhuma das mulheres que amara. Mentira, recordava Clarice. Talvez porque tenha sido apenas há semanas que a relação rompera. Talvez porque ainda a amasse. Talvez. Como dói o indeciso tempo do “talvez”. Pior que essa dor só mesmo a conformada certeza dos amores eternos”.

Por Mia Couto, em ‘Olhos nus olhos’, conto da coletânea ‘essa história está diferente’, organizado Por Ronaldo Bressane – Companhia das Letras

sábado, 16 de abril de 2011

Chaves para um monólogo de dois

Caminhávamos escuros pela noite só
tendo à mão alguns versos que costuravam a boca
com um par de pontos em favor do silêncio
- Um jogo de palavras - a língua
se fazia um ninho de fios para emaranhar
as metáforas destes encontros noturnos
que terminavam em parques,
cujos nomes convertíamos em chaves
ou cruzes para marcar o mapa
de nossos desenganos.

Claves para un monólogo de dos

Caminábamos oscuros por la noche sola
de la mano de unos versos que cosían la boca
con un par de puntos a favor del silencio
- un juego de palabras -, la lengua
se hacía un nudo de hilo para enredar
las metáforas de esas citas nocturnas
que se llevaban a cabo en parques,
cuyos nombres convertíamos en claves
o cruces para marcar el mapa
de nuestros desaciertos.

Livre tradução, minha, do poema de Andrés Anwandter, extraído da coletânea Diecinueve (Poetas chilenos de los noventa), Editora J.C. Sáez

terça-feira, 5 de abril de 2011

Lar, doce lar


'A casa não pode estar nem muito em cima, nem muito embaixo. Deve ser solitária, mas não em excesso. Os vizinhos devem ser invisíveis. Não quero vê-los, nem ouvi-los. Deve ser original, mas não incômoda. Nem muito grande, nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto da animação. Além disso, deve ser muito barata'.

Pablo Neruda, a uma amiga que lhe ajudaria na tarefa de encontrar uma casa, em Valparaíso. Tais requisições parecem ter referenciado sua terceira e última casa, em Santiago.

Texto: Guia 'O melhor de Santiago do Chile', Editora Abril
Fotos: Fábio Rodrigues

terça-feira, 15 de março de 2011

PELA RUA

Sem qualquer esperança
Detenho-me diante de uma vitrina de bolsas,
(...)
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
...........................e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
..................miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
Tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço deste edifício em frente,
talvez esteja vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.

Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
.......solto ao fumo de gasolina queimada.

Por Ferreira Gullar, em 'Dentro da Noite Veloz', José Olympo Editora, 4ª Edição

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.

[...]

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
E não entraves seu uso
aos que têm sede.

Por Cora Coralina, em "Vinténs de cobre: meias confissões de Aninha", Editora Global.