segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
A Luis Mauricio, Infante
Acorda, Luis Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.
Despertando, Luis Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?
Que seria de ti, Luis Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário
e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luis Mauricio, que sejam novos e comovidos.
E como há tempo para viver, Luis Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera
tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.
Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luis Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.
E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.
Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,
conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,
de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.
O tempo – que fazer dele? Como adivinhar, Luis Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?
Hás de aprender o tempo, Luis Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,
que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.
Aprenderás muitas leis, Luis Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,
e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.
Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas
são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas
que alguém um dia cantará, Luis Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto
ou de riso.E te acompanhará, Luis Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,
enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado
articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,
imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;
o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;
o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;
o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,
que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.
É preciso criar de novo, Luis Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,
de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.
Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.
Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água – nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar
que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.
É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas
do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os “chicos” e as “palomas” confraternizam na “Plaza de Mayo".
Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luis Mauricio.
Por Carlos Drummond de Andrade
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.
Despertando, Luis Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?
Que seria de ti, Luis Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário
e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luis Mauricio, que sejam novos e comovidos.
E como há tempo para viver, Luis Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera
tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.
Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luis Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.
E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.
Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,
conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,
de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.
O tempo – que fazer dele? Como adivinhar, Luis Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?
Hás de aprender o tempo, Luis Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,
que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.
Aprenderás muitas leis, Luis Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,
e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.
Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas
são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas
que alguém um dia cantará, Luis Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto
ou de riso.E te acompanhará, Luis Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,
enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado
articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,
imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;
o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;
o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;
o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,
que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.
É preciso criar de novo, Luis Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,
de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.
Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.
Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água – nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar
que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.
É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas
do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os “chicos” e as “palomas” confraternizam na “Plaza de Mayo".
Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luis Mauricio.
Por Carlos Drummond de Andrade
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
CANÇÃO DA ALMA CAIADA
Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
Por Antonio Cícero
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
Por Antonio Cícero
Os Três Mal-Amados
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O
amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera
meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus
ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura,
meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas
receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus
raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus
livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no
dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de
meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor
devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o
aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a
mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos
sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino
esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que
tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade.
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas
duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados
pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não
saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não
anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as
linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande
poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de
cabeça, meu medo da morte.
Por João Cabral de Melo Neto em "Os Três Mal-Amados", do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Cor de Rosa
E como pode alguém escrever algo tão bonito sobre um peru, aos olhos de um menino encantado?
"Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre
a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber
sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou fazendo roda: o rapar as asas no
chão – brusco, rijo, - se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso
de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro de céu e
sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com
reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor,
poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de
se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziu outro gluglo. O
menino riu, com todo o coração."
Por Guimarães Rosa, em 'As margens da alegria' - conto de 'Primeiras Estórias'.
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Milágrimas
em caso de dor ponha gelo
mude o corte de cabelo
mude como modelo
vá ao cinema dê um sorriso
ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido
troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério deixe os critérios
siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada mil lágrimas sai um milagre
caso de tristeza vire a mesa
coma só a sobremesa coma somente a cereja
jogue para cima faça cena
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada mil lágrimas sai um milagre
mas se apesar de banal
chorar for inevitável sinta o gosto do sal do sal do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas três dez cem mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada mil lágrimas sai um milagre
Por Alice Ruiz e Itamar Assumpção
Não gosto da música, mas o poema...!!!
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Eu nem sempre quero ser feliz*
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...
Por Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em 'O Eu profundo e os outros Eus', Editora Nova Fronteira.
* Este não é o título do poema.
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...
Por Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em 'O Eu profundo e os outros Eus', Editora Nova Fronteira.
* Este não é o título do poema.
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
O amor acaba?
Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Por Paulo Leminski
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Por Paulo Leminski
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Chiquinha Gonzaga, sim, senhor!
Para mim, 'Chiquinha Gonzaga' é,
sem dúvida, a melhor minissérie brasileira de todos os tempos. A trama,
inspirada numa obra biográfica, vai muito além de um drama romântico e
familiar: contextualiza no universo histórico e social brasileiro, a trajetória
de uma mulher que idealizava a criação de um ritmo que misturaria a música
negra com a europeia. ‘A polca com
batuque de lundu e o lundu com marcação de polca’, segundo suas palavras.
A sociedade do século XIX é
retratada com maestria pela obra televisiva, à medida em que são abordados temas
como a efervescência abolicionista dos intelectuais e artistas, a aristocracia
militar, a Guerra do Paraguai, a abolição da escravatura, a queda da monarquia,
a instauração da república etc.
Chiquinha nasceu em 1847, ano de uma época
quando as mulheres eram obrigadas a viver à sombra e à mercê de seus pais e maridos,
em nome da preservação da família e de uma boa reputação. Trabalhar fora, sair
desacompanhada, escolher o próprio casamento, definitivamente, não eram
prerrogativas concedidas às damas brasileiras .
Logo no início do primeiro
episódio, Francisca, ainda bem jovem, é apresentada à sociedade em um baile de
gala, mas seu pai tem um problema e precisa partir mais cedo. Duque de Caxias
(ainda marquês, na época) coloca então, parte da Guarda Nacional, responsável
por sua segurança pessoal, à disposição de Francisca para escoltá-la na volta
para casa, a fim de que ela pudesse desfrutar da festividade até o seu término.
Chiquinha, durante o regresso, avista uns amigos que estão a caminho de um
terreiro de lundu. Sem hesitar, obriga a Guarda a acompanhá-los ao inusitado
passeio, dança e toma aguardente com os negros até o dia raiar.
Não é necessário qualquer esforço
para imaginar o impacto que causavam as atitudes espontâneas desta filha de militar.
Sua honestidade e dignidade jamais foram usadas como argumentos para lhe redimir.
Os parâmetros sociais simplesmente não admitiriam uma mulher boêmia,
freqüentadora de saraus de música e que resolveu desfazer seu primeiro casamento,
em nome do amor verdadeiro e da liberdade.
Independentemente da época, quem
se aventura a romper a barreira do convencional ou do socialmente aceito, paga
um alto preço. Com nossa heroína, não foi diferente. Foi ‘obrigada’ a se
separar de quase todos os seus filhos, sendo renegada por sua família, ficou
desempregada, passou por privações materiais e sofreu preconceitos de todas as
ordens (era mulher, separada, boêmia, abolicionista, musicista e buscava seu
próprio sustento).Mesmo diante de todas as dificuldades, suas crenças e seus ideais
nunca foram abandonados.
Para quem não agüenta mais a
dramaturgia brasileira destituída de qualquer valor e os personagens da vida
real, cada vez mais ordinários e massificados, a vida de Francisca Ediwiges
Gonzaga é uma empolgante inspiração.
Se Clarice tivesse comentado a
respeito da vida de Chiquinha, certamente, não a classificaria como uma pessoa
best-seller*, mas vou me limitar a supor o fato, em vez de atribuir-lhe falsas
palavras, mais uma vez.
*Pessoa best-seller foi um termo
adotado por Clarice para descrever à sua irmã,
Tânia, as pessoas com quem convivia em Berna, por ocasião da missão diplomática
de seu marido. “Na verdade o que eles são mesmo é best-sellers... as opiniões
deles são best-sellers, as ideias deles são best-sellers.” O trecho completo
faz parte deste blog e está no marcador ‘Clarice Lispector’.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Nem só de leveza....
INVEJA
Desgosto causado pela virtude alheia.
Atitude destrutiva em relação aos ganhos de outrem.
Necessidade do que não é seu.
Perspectiva de vitória em prol do fracasso alheio.
‘Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da
cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera-os de propósito. Viver segregado
dos principais era para ele um grande sacrifício; mas como teria de padecer
muito mais vivendo com eles, tragava a situação. (...) A verdade é que, com
esses companheiros, desapareciam todas as perturbações fisiológicas de Nicolau.
Ele fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além
disso, não só lhes poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em
tornar-lhe a vida, senão deliciosa, tranqüila (...) com uma certa familiaridade
inferior.’
Do livro ‘Os 7 pecados capitais na obra de
Machado de Assis’. Conto ‘Verba testamentária’. Organização: Maria Clara
Carneiro e Maria de Fátima Pereira. Editora Hunter Books.
*
Semi-imbecil trabalhava, vivia, moscamurro,
raivancudo, senão de si não gostando de ninguém. Ante tudo enfuriava-se pronto
às mínimas e niglingas (...). Exigia para si o bom respeito das coisas.
[...]
Melhor consigo mesmo se entendia, a meio de
rangidos e resmungos.
[...]
Ainda abaixo dele, bobo, bem, meio idiota era o
outro, o que de alcunha o Gango; tolo tanto (...). Simiava-o esse obediente
mirava por modelo ao Mechéu, maramau, que o tratava de menor.
[...]
Ele faz demais questão de continuar sendo sempre
ele mesmo - um dos moços observou.
[...]
Não falemos mais dele.
Por Guimarães Rosa, no conto 'Mechéu', de Tutameia.
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