sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Coisas que são - 4

Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos do Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de descobrirem-se, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia de suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, "leves", disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem nessa estranha vida: porque muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém é capaz de enfrentar toda aquela solidão.

*
A maior parte do tempo, porém, o que nós compartilhávamos era o silêncio. E isso aprendi contigo porque não sabia. Para mim, o silêncio era sinal de distância, de mal-estar, de desentendimento. Ao princípio, quando ficávamos calados por muito tempo, eu sentia-me inquieta, desconfortável e começava a falar só para afastar esse anjo mau que estava a passear entre nós.
Um dia, tu disseste-me:
- Cláudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.

Por Miguel Sousa Tavares, em 'No teu deserto'


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quanto a mim, você precisa saber que eu precisamente não escolheria a loucura se houvesse outra escolha.

Por Vincent Van Gogh
Trecho de uma carta escrita ao seu irmão quando ele foi invonlutariamente internado num hospital psiquiátrico em St. Remy (1889).

* Retirei de uma passada de olho no livro 'Cadê a minha sorte?', do autor Mario Sergio Limberte, que usa a frase como citação inicial de um capítulo e indica sua referência bibliográfica.

Uma menina igual a mil

E também queria ficar ao pé de ti, excepto quando me irritavas. Havia qualquer coisa em ti que me irritava e me atraía, ao mesmo tempo. Quando eras doce e querido, [...] eu queria ficar ao pé de ti, porque me davas segurança e simultaneamente sentia que devia também proteger-te. Havia um conforto e uma paz ao teu lado que eu não sentia ha muito, muito tempo, e que agora ia sentindo, aos poucos, a tomar conta de mim, como uma coisa antiga e segura, perdida lá longe, algures noutras guerras. Mas quando tu ficavas irritado e irritante, [...], aí eu afastava-me.

Por Miguel Sousa Tavares, em 'No teu deserto'.

Kind of blue

...porque todos nós estamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes repulsa pela "vida viva", e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a "vida viva" autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é o melhor. E por que nos agitamos às vezes, por que fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós mesmos não o sabemos. Será pior para nós mesmos se forem satisfeitos os nossos extravagantes pedidos. [...] Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado até ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos e isto agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia...

Por Fiódor Dostoiévski, em 'Memórias do Subsolo'
Tradução de Boris Schnaiderman