terça-feira, 29 de julho de 2008

Ode I.38

Odeio, moço, extravagâncias persas
E não me agradam coroas de tília;
Deixa de procurar, em pleno inverno,
Rosas tardias.

Que não elabores o simples mirto*
É o que desejo: nem de ti, servindo,
Destoa o mirto, nem de mim, sob farta
Vide**, bebendo.

* Gênero de ervas; planta.
** Ramo da videira.

Horácio
Por Antonio Cícero

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Clarice, sobre...

“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais. Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita.”
Por Clarice Lispector

quinta-feira, 24 de julho de 2008

*

DIANTE DE TEU ROSTO TARDIO,
só -
indo entre
noites que também me transformam,
ficou algo
que já estivera conosco, in-
tocado por pensamentos.

Paul Celan
Por Cláudia Cavalcanti, em 'Cristal'

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Em 1901...

[...] avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva [...] Os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade! Ei-la agora coberta de moradas em que eles se não abrigam; armazenada de estofos, com que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ... [...] as criancinhas gelam nos seus trapos; e a polícia, em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capital der Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável, é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo - não poderia aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras e túbaras que são o orgulho da Civilização. Há andrajos em trapeiras - para que as belas Madamas de Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, subam em doce ondulação, a escadaria da Ópera. Há mãos regeladas que se estendem e beiços sumidos que agradecem o dom magnânimo dum sou - para que os Efrains tenham dez milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas dos duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos - para que os Jacintos, em Janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champanhe e avivados dum fio de éter!
Por Eça de Queirós
Trecho de 'A cidade e as Serras'

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"[...] docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade."

Cecília Meireles

quinta-feira, 17 de julho de 2008

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O horizonte corta a vida isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito: apenas consentimento.

Por Cecília Meireles - Trecho final de 'Marcha'

quarta-feira, 16 de julho de 2008

de Bandeira, para Clarice

Quer me mandar algumas coisas? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos, você é bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembre de mim. Você nunca é falante, barulhenta. O que você escreve nunca dói nem fere os ouvidos. Você sabe escrever baixo. E sua assinatura, Clarice, é você inteirinha:
Clara...Clarinha...Clarice.

Manuel Bandeira

cor de Rosa (Fragmentos - 4)

Mas eu olhava (...), com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sôbejo de esforço, fazia de conversar uma conversa adulta e antiga. Fui recebendo em mim o desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira - só meu companheiro amigo desconhecido.

João Guimarães - Grande Sertão: Veredas

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,

isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro

Do que de um pássaro sem vôos.

[...]
Por Antonio Cícero

Ética a Nicômaco - Fragmentos 1

[...]
Um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e preferindo o meio-termo – o meio-termo não em relação ao objeto, mas em relação a nós.
[...]
Por isso dizemos muitas vezes que nada se é possível acrescentar ou tirar das boas obras de arte, querendo dizer que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras, ao passo que o meio-termo a preserva, e como dissemos, os bons artistas no seu trabalho buscam isso –, e se, além disso, a virtude, do mesmo modo que a natureza, é mais exata e melhor que qualquer arte, segue-se que a virtude deve ter a qualidade de visar ao meio-termo. Falo da virtude moral, pois é ela que se relaciona com as paixões e ações, e nestas existe excesso, carência e um meio-termo.
[...]
Por outro lado, é possível errar de várias maneiras (pois o mal pertence à classe do ilimitado e o bem à do limitado, conforme os pitagóricos imaginaram), enquanto só é possível acertar de uma maneira. Também por esse motivo é fácil errar e difícil acertar: fácil errar a mira, difícil atingir o alvo; e também é por isso que o excesso e a falta são características do vício, e a mediania é uma característica da virtude: “Os homens são bons de um modo apenas, porém são maus de muitos modos”.
[...]
Mas nem toda ação ou paixão admite meio-termo, pois algumas entre elas têm nomes que já em si mesmos implicam maldade, como por exemplo, o despeito, o despudor, a inveja, e, no âmbito das ações, o adultério, o roubo, o assassinato. Com efeito, nessas ações e paixões e outras semelhantes, a maldade não está na falta ou excesso, mas implícita nos próprios nomes. Nelas nunca será possível haver retidão, mas tão-somente o erro.
[...]
Aristóteles
Por Pietro Nassetti

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Anjo da Ilusão

Mais vale um sentimento verdadeiro
perdido em sua luxúria e vaidade
do que acaso fingir ser derradeiro
esse poço, essa concretude, essa unidade.

Tempo de viver com urgência
consumir e deixar-se consumir
contrariar toda malevolência
chorar para poder depois sorrir.

Livros em branco, ausência de ardor
flores inermes, total dissabor
músicas surdas, exasperado ganido.

A espera não resistiu a rapidez
do furor restou apenas languidez
da partitura, um coração sustenido.

Pelo meu amigo-poeta,
Gabriel Conte Quiliconi

sábado, 5 de julho de 2008

*



Quem arranca de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.
Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas
e falar de ti e de mim.

Paul Celan
Por João Carlos Silva

ELEGIA 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem o parque da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a
[concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de
[morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande
[Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta
[distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'

terça-feira, 1 de julho de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 3)

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto. A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo, ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.

João Guimarães - Grande Sertão: Veredas