segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Bom. Até no título.

Os sobreviventes (Para ler ao som de Ângela Ro-Ro)

...Uma certa saudade, e você em Sri-Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele foi bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodca nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha-de-centro em junco indiano que apoia nossos fatigados pés descalsos ao fim de mais outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, ela diz que sim, claaaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trept, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sociopolíticos exitenciais e bababá em comum só podiam era dar nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta

(...)

...e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, a única diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodca, me passa um cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing in special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o cvv às quatro da madrugada e alugo a cabeça de um panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-uma-razão-para-viver-e-sei-que-essa-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá e me lamurio até o sol pintar atrás daqueles edifícios sinistros, mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva que insistir sem fé nenhuma?

Por Caio Fernando de Abreu, em Morangos Mofados, Editora Agir.