segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nem só de leveza....


INVEJA
Desgosto causado pela virtude alheia.
Atitude destrutiva em relação aos ganhos de outrem.
Necessidade do que não é seu.
Perspectiva de vitória em prol do fracasso alheio.

‘Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera-os de propósito. Viver segregado dos principais era para ele um grande sacrifício; mas como teria de padecer muito mais vivendo com eles, tragava a situação. (...) A verdade é que, com esses companheiros, desapareciam todas as perturbações fisiológicas de Nicolau. Ele fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além disso, não só lhes poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, senão deliciosa, tranqüila (...) com uma certa familiaridade inferior.’

Do livro ‘Os 7 pecados capitais na obra de Machado de Assis’. Conto ‘Verba testamentária’. Organização: Maria Clara Carneiro e Maria de Fátima Pereira. Editora Hunter Books.

*

Semi-imbecil trabalhava, vivia, moscamurro, raivancudo, senão de si não gostando de ninguém. Ante tudo enfuriava-se pronto às mínimas e niglingas (...). Exigia para si o bom respeito das coisas.
[...]
Melhor consigo mesmo se entendia, a meio de rangidos e resmungos.
[...]
Ainda abaixo dele, bobo, bem, meio idiota era o outro, o que de alcunha o Gango; tolo tanto (...). Simiava-o esse obediente mirava por modelo ao Mechéu, maramau, que o tratava de menor.
[...]
Ele faz demais questão de continuar sendo sempre ele mesmo - um dos moços observou.
[...]
Não falemos mais dele.

Por Guimarães Rosa, no conto 'Mechéu', de Tutameia.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Troco

Se a obra
é a soma das penas,
pago,
mas quero meu troco
em poemas.

Por Itamar Assumpção

Alívio

Foi saindo
o doer
até 
que
cadê?

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Cantar é preciso



Era preciso que
o canto não cessasse nunca. Não pelo
canto (canto que os homens ouvem) mas
porque can-
tando o galo
é sem morte.

Trecho do poema 'As peras', de Ferreira Gullar

Uma luz do chão


Não, não há nenhuma poética universal: universal é a poesia, a vida mesma. [...] Universal é o quintal da casa, cheio de plantas [...] E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas; nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso eu quis fazer minha poesia [...] porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.


A literatura, que me prometia uma resposta para o enigma da vida, lembrava-me a morte, com seu mundo de letras pretas impressas em páginas amarelecidas. Compreendi que a poesia devia captar a força e a vibração da vida ou não teria sentido escrever. Nem viver. Mergulhei assim numa aventura cujas conseqüências eram imprevisíveis.
[...] Sei que para o impasse da poesia e do homem não há soluções definitivas: pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer. Uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.
 
O poeta fala dos outros homens e pelos outros homens, mas só na medida em que fala de si mesmo, só na medida em que se confunde com os demais. [...] É da própria natureza da arte romper os limites da solidão, ainda que seja abismando-se nela, transcendendo-a por baixo.
[...]
“O poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja apenas o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer um poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem sentido.”
[...]
Foi no ato de ler e não no ato de escrever que a minha visão da literatura subitamente se configurou. Já não pude, a partir daquele instante, ser a mesma pessoa.

Por Ferreira Gullar em ‘Sobre poesia (Uma luz do chão)'. José Olympio Editora.