segunda-feira, 27 de abril de 2009

Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio outro silêncio,
aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Por Octavio Paz, em "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

Sem Remédio

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou ...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Por Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sobre forma, conteúdo e liberdade...

Quem interpreta, ao invés de simplesmente aceitar e classificar, é rotulado como aquele que, impotente, com mal orientada inteligência, entrega-se a finuras, implicando onde nada há para explicar. Ser um homem com os pés no chão ou ser um avoado: eis a alternativa. Mas basta deixar-se aterrorizar pela proibição de pensar além do que já se encontrava pensado para transigir com a falsa intenção de que homens e coisas nutrem de si mesmos.
(...)
Na alegria contra as formas tomadas como meramente acidentais o espírito científico aproxima-se do espírito teimosamente dogmático. A palavra disparada irresponsavelmente pretende provar a responsabilidade no assunto, e a reflexão sobre as coisas do espírito torna-se privilégio dos carentes do espírito.
(...)
Arrancada da disciplina da acadêmica falta de liberdade, a própria liberdade espiritual perde a liberdade e se torna servil, indo ao encontro da necessidade socialmente pré-formada da clientela. (...) A verdadeira responsabilidade respeita não apenas autoridades e grêmios, como também a crise de que trata.
Por Theodor W. Adorno, em Sociologia.
Organizador: Gabriel Cohn

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Páginas das Páginas (algumas citações)

Não encontro outro descanso senão nos teus olhos. E não é a mocidade que vejo brilhando no fundo dos teus olhos de vinte anos - é a eternidade.
*
Não sei se ela tão fina, tão penetrante, compreendeu minha agonia. A tarde era opalina e eu me sentia transparente como a água azul da piscina que olhávamos. Pelas alegrias da vida pagamos tão caro, que não sei se seria melhor que fôssemos sempre infelizes.
*
O que mais temo: o total aniquilamento. Não pelo aniquilamento, mas pelo horror ao efêmero.
*
Por Marques Rebelo, em 'As Cem Melhores Crônicas Brasileiras'
Seleção: Joaquim Ferreira dos Santos

segunda-feira, 6 de abril de 2009

de Clarice, para suas irmãs

Estrelícia...

Isso que estou sentindo poderia se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor.


Lausanne, 13 de julho de 1946. - A Elisa Lispector e Tania Kaufmann


Por Clarice Lispector, em 'Correspondências - Clarice Lispector'. Organização de Teresa Montero. Editora Rocco.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

cor de Rosa (Fragmentos 12)

...nós dois. A gente dava passeios (...) Era um delém que me atirava para ele - o irremediável extenso da vida (...) E eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação (...): eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que o coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende.
João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'

GUERRA

Criança, certos céus aguçaram minha ótica: todos os caracteres matizaram minha fisionomia. Os fenômenos me emocionaram. - Hoje, a inflexão eterna dos momentos e o infinito das matemáticas me perseguem por este mundo onde suporto todos os sucessos civis, respeitado pela infância estranha e por imensos carinhos. - Sonho com uma Guerra, de direito ou de força, com uma lógica nada previsível.
Tão simples quanto uma frase musical.
Por Arthur Rimbaud
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, em 'Iluminuras'.
(Guerra ao cor-de-rosa, inclusive, porque eu D-E-T-E-S-T-O essa cor!!!)