domingo, 29 de novembro de 2009

O acendedor de lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!


Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.


Triste ironia atroz que o senso humano irrita: -

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita,


Tanta gente também nos outros Insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!


Por Jorge de Lima

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O milagre das folhas

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: " Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.

Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.

Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.

Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.

Por Clarice Lispector, em 'As Cem Melhores Crônicas Brasileiras'. Org. Joaquim Ferreira dos Santos.


domingo, 8 de novembro de 2009

"Depois de tocar Chopin, sinto-me como se chorasse por pecados que jamais cometi e lamentasse por tragédias de que não fui vítima".

Por Oscar Wilde, em 1891.

Tirei
do 'Guia Ilustrado Zahar de Música Clássica' (Jorge Zahar Editor).

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

cor de Rosa (fragmentos - 16)

Quem vence, é custoso não ficar com cara de demônio.
[...]
O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? (...) As coisas que eu tinha de ensinar à minha inteligência.
Por João Guimarães Rosa em 'Grande Sertão: Veredas'.

*

Qual é o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a história sem sofrer.
Até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder.
Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido.
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Povo alquebrado, cujo sangue sem vigor...
Esse povo precisa da morte, mais do que se possa supor.
O sangue, que estimula em meu irmão a dor.
O sentimento do nada que gera o amor!
A morte como fé, não como temor!


Fala do personagem Paulo Martins, no filme 'Terra em Transe', de Glauber Rocha.
*Contribuição preciosíssima do amigo Fernando Marques Fraga, a quem agradeço pela dica.