quarta-feira, 25 de junho de 2008

[e eu apenas perguntei se]



e eu apenas perguntei se
ele troca de roupa como
troca de querença de
vontade há constância
apenas na espera
feito de plástico eu
seria mais útil
durável prático sem
a morbidez da
pele mole da
expectativa
rígida a escala
vertical da escolha
permite à vontade
apropriar-se do
acaso de acordo
com suas
necessidades o
prego solto lembra
-me que ainda
posso inflamar
pelo menos a
mim mesmo o
dia resigna-se
às minhas
certezas
biológicas


Por Ricardo Domeneck
Foto: Leo Burnet para protesto do Exército da Salvação na África do Sul contra o tráfico de pessoas.
*
O inquietante é que, em maior ou menor escala, TODOS estamos à venda, temos preço e... somos descartáveis. Assim, constitui-se a maior parte das relações profissionais e "amorosas" da atualidade.
Isso é normal???
*

terça-feira, 24 de junho de 2008

Mundo Grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento jornais, me exponho cruamente nas
[livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e
[algodão.

Viste as diferentes cores dos homes,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao
[suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto, alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os
[dias,
entre o fogo e o amor.

Então meu coração pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'

domingo, 22 de junho de 2008

*

À NOITE, quando o pêndulo do amor oscila,
entre Sempre e Nunca,
tua palavra junta-se às luas do coração
e teu tempestuoso olho
azul entrega à terra o céu.

De bosque distante, enegrecido de sonho
sopra-nos o apagado,
e o perdido rodeia, grande como os fantasmas do futuro.

O que então se afunda e se ergue
vale para o intimamente enterrado:
cego como o olhar que trocamos,
beija o tempo na boca.

De Paul Celan

Por Cláudia Cavalcanti, em 'Cristal'

quinta-feira, 19 de junho de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 2)

Confiança - o senhor sabe - não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.
João Guimarães - Grande Sertão: Veredas
Foto: Tom Alves - Quadrilha - São João em Caruaru (www.tomalves.com.br)

O Passo

Teu passo, inato ao meu silêncio,
beira sagradamente, a fio,
meu leito insone e, com imenso
vagar, vem vindo mudo e frio.

Sombra divina, forma pura:
Deus!... tudo o que de bom supus
- passo contido, que doçura! -
já se aproxima com pés nus.

Se, lábios entreabertos, frente
a mim, reservas ao desejo
que ocupa minha mente
este alimento que é teu beijo,

mantém o enlevo ainda à parte
(no doce impasse existo e passo),
pois, ao viver, só de esperar-te,
meu coração pôs-se em teu passo.

Paul Valéry

Por Nelson Ascher

quarta-feira, 18 de junho de 2008

VINTE ANOS

Vozes instrutivas exiladas... A ingenuidade física amargamente domada... Adágio. Ah! o egoísmo infinito da adolescência, o otimismo estudioso: como o mundo se encheu de flores nesse verão! Árias e formas morrendo... Um coral, que acalme a impotência e a ausência! Um coral de copos, de melodias noturnas... Na verdade, nervos velozes saem à caça.
[...] Brincadeiras de pouco cuidado, tiques de orgulho pueril, o abatimento e o pavor. Mas tu te pões a trabalhar: todas as possibilidades harmônicas e arquiteturais vão se emocionar ao redor de tua cadeira. Seres perfeitos, imprevisíveis, vão se oferecer às tuas experiências. Em tuas imediações, fluirão em sonhos a curiosidade das antigas multitudes e luxos ociosos. Tua memória e teus sentidos serão o único alimento de teu impulso criativo. Quanto ao mundo, quando tu saíres, o que ele será? Em todo caso, nada dessas aparências atuais.
Arthur Rimbaud
Por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, em 'Iluminuras'

terça-feira, 17 de junho de 2008

A Flor e a Náusea




Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
[...]

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Drummond, em 'A Rosa do Povo'

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'

Liberdade

"[Queria] Usar de liberdade e ser cativo".
Camões

cor de ROSA (Fragmentos - 1)

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.

João Guimarães - Grande Sertão: Veredas

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Valor




Não dou valor à fartura e às riquezas

Por isso vou ficar cada vez mais feliz

Para trazer mais riqueza à minha mente

E não ter minha mente na riqueza.

Por Sor Juana Inés de la Cruz
Quadro: Vladimir Kush

Por que os poetas mentem: motivos adicionais



Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
"Estou desesperado."
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
"estou morrendo", estertora apenas um gemido
baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.

Hans Magnus Enzenberger - Weitere Gründe dafür, das die Dichter lügen
Por Nelson Ascher