sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Coisas que são - 4

Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos do Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de descobrirem-se, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia de suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, "leves", disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem nessa estranha vida: porque muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém é capaz de enfrentar toda aquela solidão.

*
A maior parte do tempo, porém, o que nós compartilhávamos era o silêncio. E isso aprendi contigo porque não sabia. Para mim, o silêncio era sinal de distância, de mal-estar, de desentendimento. Ao princípio, quando ficávamos calados por muito tempo, eu sentia-me inquieta, desconfortável e começava a falar só para afastar esse anjo mau que estava a passear entre nós.
Um dia, tu disseste-me:
- Cláudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.

Por Miguel Sousa Tavares, em 'No teu deserto'


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quanto a mim, você precisa saber que eu precisamente não escolheria a loucura se houvesse outra escolha.

Por Vincent Van Gogh
Trecho de uma carta escrita ao seu irmão quando ele foi invonlutariamente internado num hospital psiquiátrico em St. Remy (1889).

* Retirei de uma passada de olho no livro 'Cadê a minha sorte?', do autor Mario Sergio Limberte, que usa a frase como citação inicial de um capítulo e indica sua referência bibliográfica.

Uma menina igual a mil

E também queria ficar ao pé de ti, excepto quando me irritavas. Havia qualquer coisa em ti que me irritava e me atraía, ao mesmo tempo. Quando eras doce e querido, [...] eu queria ficar ao pé de ti, porque me davas segurança e simultaneamente sentia que devia também proteger-te. Havia um conforto e uma paz ao teu lado que eu não sentia ha muito, muito tempo, e que agora ia sentindo, aos poucos, a tomar conta de mim, como uma coisa antiga e segura, perdida lá longe, algures noutras guerras. Mas quando tu ficavas irritado e irritante, [...], aí eu afastava-me.

Por Miguel Sousa Tavares, em 'No teu deserto'.

Kind of blue

...porque todos nós estamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes repulsa pela "vida viva", e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a "vida viva" autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é o melhor. E por que nos agitamos às vezes, por que fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós mesmos não o sabemos. Será pior para nós mesmos se forem satisfeitos os nossos extravagantes pedidos. [...] Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado até ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos e isto agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia...

Por Fiódor Dostoiévski, em 'Memórias do Subsolo'
Tradução de Boris Schnaiderman

domingo, 29 de novembro de 2009

O acendedor de lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!


Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.


Triste ironia atroz que o senso humano irrita: -

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita,


Tanta gente também nos outros Insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!


Por Jorge de Lima

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O milagre das folhas

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: " Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.

Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.

Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.

Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.

Por Clarice Lispector, em 'As Cem Melhores Crônicas Brasileiras'. Org. Joaquim Ferreira dos Santos.


domingo, 8 de novembro de 2009

"Depois de tocar Chopin, sinto-me como se chorasse por pecados que jamais cometi e lamentasse por tragédias de que não fui vítima".

Por Oscar Wilde, em 1891.

Tirei
do 'Guia Ilustrado Zahar de Música Clássica' (Jorge Zahar Editor).

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

cor de Rosa (fragmentos - 16)

Quem vence, é custoso não ficar com cara de demônio.
[...]
O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? (...) As coisas que eu tinha de ensinar à minha inteligência.
Por João Guimarães Rosa em 'Grande Sertão: Veredas'.

*

Qual é o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a história sem sofrer.
Até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder.
Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido.
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Povo alquebrado, cujo sangue sem vigor...
Esse povo precisa da morte, mais do que se possa supor.
O sangue, que estimula em meu irmão a dor.
O sentimento do nada que gera o amor!
A morte como fé, não como temor!


Fala do personagem Paulo Martins, no filme 'Terra em Transe', de Glauber Rocha.
*Contribuição preciosíssima do amigo Fernando Marques Fraga, a quem agradeço pela dica.

sábado, 10 de outubro de 2009

...

"Era dia comum
e virou festa.
A gente põe nas coisas
as cores que tem por dentro".

Por Antonio Marcos Noronha, rm 'Festa'

Sobre Manoel de Barros

"(...) Tem escritores, tem poetas, que escrevem para dizer como as coisas são. Tem outros que escrevem para inventar como elas poderiam ser, se tudo fosse mais encantado e, por isso, mais verdadeiro. Com esse amigo, Manoel de Barros, tenho aprendido a esperar flor florir, a olhar o mato e ver a festa, a conversar com lagartixa, a fazer peraltices com as palavras, a espiar vôo de passarinho até ver a cor do vento. Um dia, quem sabe, eu aprendo... eu só não, nós todos, a carregar água na peneira, a me apaixonar por moça que não existe. (...)"

Por Carlos Rodrigues Brandão

Poema de Fernado Pessoa

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar,
Sabe bem olhar p´ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P´ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Por Fernando Pessoa

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Doce, doce...melado!!!

AMAR TEUS OLHOS

Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos
escrever o verbo semear
e ser tua pele
a terra de nascer poema.

Podia com teus olhos escrever
a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.

Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.

Carlos Melo Santos, em "Lavra de Amor"

domingo, 27 de setembro de 2009

Perfeito!

ORION

A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.

Por Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Angústia - 2

Nunca presto atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos (...). Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba.
***
O que eu precisava era ler um romance fantástico, um romance besta, em que os homens e as mulheres fossem criações absurdas, não andassem magoando-se, sentindo vontade de se traírem. Histórias fáceis, sem almas complicadas.
***
Sentia vontade de chorar, tinha um bolo na garganta.
Por Graciliano Ramos, em 'Angústia'

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Trova

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assim crescesse:
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo
tamanho inimigo de mim?

Por Francisco de Sá de Miranda em Obras completas.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Só se acha o que se caça; o que negligenciamos nos escapa.


Fala do personagem Creon, em 'Édipo Rei', de Sófocles

Tradução de Trajano Vieira
Versão na íntegra para download em
http://letrasuspdownload.blogspot.com/2009/08/flc0113-livro-edipo-rei.html

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Nalgum lugar...

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

(...)

(não sei o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

Por E. E. Cummings
Tradução de Augusto de Campos
Do blog antoniocicero.blogspot.com

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!


Por Florbela Espanca

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Não pelo valor humano, mas...

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói.


Por Machado de Assis, no Conto 'Pai contra Mãe', obtido de:

(http://portal.mec.gov.br/machado/arquivos/html/contos/macn007.htm#paicontramae_embaixo)

Recomendo muitíssimo a leitura do conto inteiro, que causa um nó na garganta. Igualmente produz esse efeito o filme nele baseado, 'Quanto vale, ou é por quilo?', de Sérgio Bianchi. Vale a pena conferir ambos.

A obra completa do Machado encontra-se disponível no site
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Poema de Campos

Não, não é cansaço...

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

É um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...

É eu estar existindo

E também o mundo,

Com tudo aquilo que contém,

Com tudo aquilo que nele se desdobra

E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?

É uma sensação abstracta

Da vida concreta –

Qualquer coisa como um grito

Por dar,

Qualquer coisa como uma angústia

Por sofrer,

Ou por sofrer completamente,

Ou por sofrer como...

Sim, ou por sofrer como...

Isso mesmo, como...

Como quê?...

Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(...)

Porque oiço, vejo.

Confesso: é cansaço!...

Por Álvaro de Campos - Fernando Pessoa

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

cor de Rosa (Fragmentos - 15)

O que é de paz, cresce por si...
(...)
Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida(...). Naqueles olhos ...tinha muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é por isso que a gente morre.
(...)
Apanhei foi o silêncio dum sentimento feito um decreto.
(...)
Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia de minha vida. (...) Agora, o mundo quer ficar sem sertão.
Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim - de amor mesmo amor, mal encoberto de amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei - na hora.
(...)
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente... o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim, meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas - como quando a chuva anda entre-onde-os-campos. Um Diadorim só pra mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava aquele Diadorim - que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas - dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

Por João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Nunca pensei que acabasse! Tudo parecia impregnado de eternidade

Por Manuel Bandeira, em 'Evocação ao Recife', poema de 'Libertinagem' - adaptado.

cor de Rosa (Fragmentos - 14)

Transcreverei abaixo alguns dos melhores trechos de 'Miguilim' (Campo Geral), novela que fala sobre a infância...
.
Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo - o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória...
*
Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé.
*
Os olhos de um verde tão menos vazio - era uma luz dentro de outra, dentro de outra, dentro de outra, até não ter fim.
*
A gente - essas tristezas.
*
Mãitina estava pondo ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando carinhos (...) O que Mãitina falava: era no atrapalho da linguagem dela, mas tudo de ninar, de querer-bem, Miguilim pegava um sussu de consolo, fechou os olhos para não facear com os dela, mas quisesse, podia adormecer inteiro, não tinha medo nenhum, ela falava a zúo, a zumbo, a linguagem dela era até bonita, ele entendia que era só de algum amor...
*
Miguilim, sobre seu irmão, Dito:
Era capaz de brincar com Dito a vida inteira, o Ditinho era a melhor pessoa, de repente, sempre sem desassogo.
*
Mas chegava a noite de dormir, Miguilim esperdiçava as coisas todas do dia. O Dito guardou debaixo da cama uma garrafa cheia de vaga-lumes. - "Miguilim, você hoje não tirou a calça." "-Amola não, Dito. Tou cansado." Mas antes tinha carecido de lavar os pés: quem vai se deitar em estado sujo, urubu vem leva.
*
Siarlinda contou estórias. Da Moça e da Bicha-Fera, do Papagaio Dourado que era um príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato. Contou estórias de sombração, que eram as melhores, para se estremecer. Miguilim de repente começou a contar estórias titradas da cabeça dele mesmo (...) Mãe disse que Miguilim era muito ladino, depois disse que o Dito também era. Tomezinho desesperou, porque Mãe tinha escapado de falar o nome dele; mas aí Mãe pegou Tomezinho no colo, disse que ele era um fiozinho caído do cabelo de Deus. Miguilim, que bem ouviu, raciocinou apreciando tudo aquilo, por demais. Uma hora ele falou com o Dito - que Mãe às vezes era a pessoa mais ladina de todas.
(...)
Tudo era bom...

Por João Guimarães Rosa, em 'Manuelzão e Miguilim' - Campo Geral

DIZER: FAZER

DIZER: FAZER

Entre o que vejo e digo,
entre o que digo e calo,
entre o que calo e sonho,
entre o que eu sonho e o que esqueço,

a poesia

se desliza
Entre o sim e o não:
diz
o que calo,
cala,
o que digo,
sonha,
o que esqueço.
Não é um dizer:

é um fazer.

É um fazer
que é um dizer.
A poesia,
se diz e se ouve:

é real.

E apenas digo

é real,

se dissipa.

Assim é mais real?

2


Ideia palpável
palavra

intangível:

a poesia

vai e vem
entre o que é

e o que não é.

Tece reflexos
e os destece.

A poesia
semeia olhos na página,
Semeia palavras nos olhos.

Os olhos falam,

as palavras olham,

Os olhares pensam.

Ouvir

os pensamentos,
ver o que dizemos,
tocar
o corpo da ideia.
Os olhos
se fecham,

as palavras se abrem.

DECIR:HACER


1


Entre lo que veo y digo
,
entre lo que digo y callo,
entre lo que callo y sueño,

entre lo que sueño y olvido,

la poesía.

.......................Se desliza
entre el sí y el no:

.......................dice
lo que callo,
.......................calla
lo que digo,

.......................sueña
lo que olvido.

.......................No es un decir:
es un hacer.

....................... Es un hacer
que es un decir

.......................La poesía
se dice y se oye:

.......................Es real.
Y apenas digo

.......................es real,
se disipa.

.......................¿Así es más real?

2


Idea palpable,
.......................palabra
impalpable:
.......................a poesía
va y viene

.......................entre lo que es
y lo no que es.

.......................Teje reflejos
y los desteje.
....................... La poesía
siembra ojos en la página,

siembra palabras en los ojos.

Los ojos hablan,

.......................las palabras miran,
las miradas piensan.

.......................Oír
los pensamientos,
.......................ver
lo que decimos,
.......................tocar
el cuerpo de la idea.
.......................Los ojos
se cierran,

las palabras se abren.

Por Octavio Paz, en 'Arbol adentro' (Seix Barral - Biblioteca Breve, 1987)
Tradução livre, minha e do Fábio Rodrigues

domingo, 5 de julho de 2009

Inconsciente Coletivo

UMA CARTA EM FORMA DE POESIA

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira,
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-afazeres.

É a cor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tampouco essas palavras-
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Por João Cabral de Melo Neto.
(Retirei de uma apostila didática da escola Vésper,
que cita como fonte a Revista Veja de 14.02.1996)

domingo, 14 de junho de 2009

Matéria de Poesia

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância servem para a poesia.

.

As coisas que não levam a nada têm grande importância.

.

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde dos pássaros,
serve para a poesia.

.

As coisas jogadas fora têm grande importância -
como um homem jogado fora.

.

Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita,
pisa e mija em cima, serve para a poesia.

.

Por Manoel de Barros, em Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda)*

*Citações retiradas do encarte do cd de Egberto Gismonti - Música de Sobrevivência. Outro agradecimento, por outra dica do Fábio R.

Coisas que são - 3

Será possível, eu me pergunto, estudar um pássaro tão intimamente, observar e catalogar suas peculiariades nos mais diminutos detalhes, a ponto de ele se tornar invisível? [...] Eu acredito que, ao nos aproximarmos de nossos objetos de estudo com a sensibilidade de estatísticos e disseccionistas, nós nos distanciamos cada vez mais do maravilhoso e fascinante planeta da imaginação cuja gravidade nos atraiu, antes de mais nada, aos nossos estudos.
Isto não quer dizer que devamos deixar de estabelecer os fatos e verificar nossas informações, mas apenas sugerir que, a menos que possam ser imbuídos da clareza da percepção poética, estes fatos permanecerão como jóias opacas; pedras semipreciosas que mal valem o trabalho de se coletar.
[...]
Alguma faceta da experiência tocou uma corda em mim, forjou uma conexão entre meu adulto insensível e combalido com a criança que se deitava sob a débil luz das estrelas enquanto os grandes caçadores da noite encenavam dramas cheios de fome e morte no ar opaco sobre mim.
Um ímpeto de vivenciar, em vez de simplesmente registrar, acendeu-se novamente em minha pessoa, dando início aos processos mentais e à auto-avaliação que levou a este artigo.
Como ressaltei antes, longe de mim sugerir que eu imediatamente tenha abandonado todo empenho acadêmico e pesquisa próprios do campo a fim de fugir e levar uma existência primordial e nua nas florestas. Pelo contrário: eu me lancei nos estudos de meu assunto preferido com fervor renovado, capaz de ver os fatos áridos e as descrições desapaixonadas sob a mesma luz transformadora que os havia favorecido na minha juventude. Uma compreensão científica dos movimentos belamente articulados e sincronizados de cada pena da coruja durante o voo, não impede uma apreciação poética do mesmo fenômeno. Na verdade, ambos se intesificam mutuamente, um olhar mais lírico empresta aos dados gélidos uma paixão da qual eles, havia muito, tinham se divorciado.

Por Alan Moore, em 'Watchmen'*

* Essa postagem é um dos muitos frutos colhidos por mim graças à contribuição de Fábio Rodrigues, de seu vastíssimo repertório, e à sua constante presença em meus dias. A ele, agradeço por esse trecho e por incontáveis outras coisas que aprendo a enxergar pela precisão de seu olhar.

sábado, 13 de junho de 2009

O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade

LEMBRETE

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Por Carlos Drummond de Andrade,
Em 'Declaração de Amor - Canção de namorados'

quinta-feira, 4 de junho de 2009

NÃO HÁ PIOR ANGÚSTIA QUE A ESPERANÇA

Para um sistema, obter a indiferença geral representa uma vitória maior do que qualquer adesão parcial, por mais considerável que seja. E, na verdade, é a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; as consequências disso já são conhecidas.
(...)
Os projetos que queremos combater foram solidamente inscritos conforme os únicos princípios agora em circulação; portanto, eles parecem arraigados, inevitáveis e tranquilamente instalados nos fatos!
(...)
Essas classes (ou essas castas) jamais cessaram de agir de suplantar, de espreitar, nem de ser solicitadas, como tentadoras, detentoras de seduções. Seus privilégios se tornam objetos de fantasias, dos desejos da maioria, até mesmo muito daqueles que, sinceros, diziam combatê-los. O dinheiro, a ocupação de pontos estratégicos, os postos a distribuir, os vínculos com outros poderosos (...) a comodidade, o luxo são alguns exemplos dos quais nada pode separá-las.
(...)
Fora do clube liberal, não há salvação. Os governos sabem disso, já que se submetem àquilo que representa, sem dúvida, uma ideologia...
(...)
A era do liberalismo, que soube impor sua filosofia sem ter realmente que formulá-la e nem mesmo elaborar qualquer doutrina, de tal modo estava ela encarnada e ativa antes mesmo de ser notada. Seu domínio anima um sistema imperioso, totalitário em suma, mas, por enquanto, em torno da democracia e, portanto, temperado, limitado, sussurrado, calafetado, sem nada de de ostentatório, de proclamado. Estamos realmente na violência da calma.
Citações do livro 'O Horror Econômico' de Viviane Forrester.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Coisas que são - 2 - por Hansen

Não acredito que a poesia caminhe para a irrelevância. Acredito que há poetas e poemas irrelevantes. Também que há sociedades irrelevantes, como a nossa. Hoje a poesia não é um valor. O que a boa poesia sempre fez? Produzir vazio, evidenciando a ficção que é o eu, impedindo que se delire com a linguagem das instituições, dando forma eficaz às maiores dores, fazendo a gente ficar espantado com a alternativa de outra vida etc. A grande poesia é sempre o exílio de uma recusa do que se dá como natural. Pensei, quando os norte-americanos causaram essa crise do capital, que finalmente os últimos vinte anos de tucanagem-yuppismo-politicamente-correto-multiculturalismo podiam finalmente morrer e que seria o momento de pensar por exemplo que arte queremos, pondo de lado a chateação insignificante das instalações, o repeteco dos pastiches, as coisas neo-neo-retrô escritas “à moda de”. No caso da poesia, sempre acreditei com Nietzsche e sem nenhum romantismo que ela se faz com o sangue da experiência. Que experiências temos hoje? O imaginário minguou com a Grande Saúde que veio com a desistoricização de tudo, fazendo eterno o presente da troca mercantil. Não temos passado e os passados se acumulam como arquivos de signos citáveis. E o futuro, principalmente ele, desapareceu da nossa competência. O jornalista toma a palavra. Quando a linguagem cotidiana é degradada e degrada as mínimas relações, qual a possibilidade de existir um Dante pra por os que cometem crimes contra a linguagem no Inferno? Temos uma ou duas gerações de poetas formados pela imprensa e pela TV. Não acredito que possamos, sem injustiça, culpá-los totalmente pela má poesia, pois também são homens e mulheres vivendo o mesmo estado de coisas. Alguns tentam, e acredito que muitos com honestidade, praticar seu ofício. Evidentemente, muitos são falados pelas coisas. E muitos são afetados, parecem blasés, leram todos os livros, acham que a carne é triste porque é gorda e fuma. Querem emagrecer e fazer exercícios. A ideologia da Grande Saúde + desistoricização + narcisismo + despolitização + plenitude = a cultura como a viadagem yuppie. Ora, grandes poetas são absolutamente impessoais. Todos eles inventam coisas que negam sistematicamente o dado imediato da experiência. Todos eles sabem que vamos morrer e falam da perspectiva da morte apostando que o presente passe logo. Como diz um deles, imaginemos uma nova ordem; ainda que seja uma nova desordem, não será bela? Não tenho nada a propor pra melhorar as coisas. Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece. Desejo que o presente passe. O que podemos é pensar a destruição.
Retirei da entrevista obtida pelo link
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Da palestra de 18.05.2009:
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Se esse governo [tucano] representa a saúde, o que é a doença?
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Certa vez, uma aluna comentou: "Nossa, professor, mas esse Drummond é depressivo! Deveria ter tomado prozac...". Pensei: "É, se ele tivesse tomado prozac, certamente não seria cocho. Seria de direita"....
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Por João Adolfo Hansen, professor de Literatura Brasileira da FFLCH - USP

terça-feira, 12 de maio de 2009

cor de Rosa (Fragmentos - 13)

Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava (...). Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre (...). Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.
(...)
Então eu vi as cores do mundo.
(...)
Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo momento, abre saudade. Até aquela - alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate as asinhas no chão.
Por João Guimarães Rosa, em 'Grande Sertão: Veredas'

Poema de Álvaro de Campos - fragmento

Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
[...]
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

1928

Por Álvaro de Campos em
'Poesia de Álvaro de Campos - Fernando Pessoa'

Um índio em terras paulistanas...

...Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu:
-Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nessa luta. Há empate.
Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.
Por Mário de Andrade, em 'Macunaíma'

O NOVO HOLOCAUSTO

Depois da exploração do homem pelo homem em nome do capital, o neoliberalismo e seu braço operacional, que é a globalização, criaram, mantêm e ampliam, em nome da sacralidade do mercado, a exclusão de grande parte do gênero humano. O próximo passo será a eliminação? Caminhamos para um holocausto universal, quando a economia modernizada terá repugnância em custear a sobrevivência de 4/5 da população mundial? Depois de explorados e excluídos, bilhões de seres humanos, considerados supérfluos, devem ser exterminados?
O raciocínio é bem mais que uma hipótese. É um desdobramento lógico do horror econômico fabricado no laboratório de economistas neste final de século.
(...)
Só os melhores, os economicamente arianos, deverão sobreviver. Os não-arianos formarão o gueto - e como a manutenção de um gueto é um paradoxo econômico (para que produzir para quem não pode consumir?), a solução a médio ou a longo prazo será o extermínio em massa. Menos custo e mais benefício para os balanços de governos e empresas.
Por Carlos Heitor Cony, na apresentação do livro de Viviane Forrester,
'O Horror Econômico'

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio outro silêncio,
aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Por Octavio Paz, em "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

Sem Remédio

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou ...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Por Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sobre forma, conteúdo e liberdade...

Quem interpreta, ao invés de simplesmente aceitar e classificar, é rotulado como aquele que, impotente, com mal orientada inteligência, entrega-se a finuras, implicando onde nada há para explicar. Ser um homem com os pés no chão ou ser um avoado: eis a alternativa. Mas basta deixar-se aterrorizar pela proibição de pensar além do que já se encontrava pensado para transigir com a falsa intenção de que homens e coisas nutrem de si mesmos.
(...)
Na alegria contra as formas tomadas como meramente acidentais o espírito científico aproxima-se do espírito teimosamente dogmático. A palavra disparada irresponsavelmente pretende provar a responsabilidade no assunto, e a reflexão sobre as coisas do espírito torna-se privilégio dos carentes do espírito.
(...)
Arrancada da disciplina da acadêmica falta de liberdade, a própria liberdade espiritual perde a liberdade e se torna servil, indo ao encontro da necessidade socialmente pré-formada da clientela. (...) A verdadeira responsabilidade respeita não apenas autoridades e grêmios, como também a crise de que trata.
Por Theodor W. Adorno, em Sociologia.
Organizador: Gabriel Cohn

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Páginas das Páginas (algumas citações)

Não encontro outro descanso senão nos teus olhos. E não é a mocidade que vejo brilhando no fundo dos teus olhos de vinte anos - é a eternidade.
*
Não sei se ela tão fina, tão penetrante, compreendeu minha agonia. A tarde era opalina e eu me sentia transparente como a água azul da piscina que olhávamos. Pelas alegrias da vida pagamos tão caro, que não sei se seria melhor que fôssemos sempre infelizes.
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O que mais temo: o total aniquilamento. Não pelo aniquilamento, mas pelo horror ao efêmero.
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Por Marques Rebelo, em 'As Cem Melhores Crônicas Brasileiras'
Seleção: Joaquim Ferreira dos Santos

segunda-feira, 6 de abril de 2009

de Clarice, para suas irmãs

Estrelícia...

Isso que estou sentindo poderia se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor.


Lausanne, 13 de julho de 1946. - A Elisa Lispector e Tania Kaufmann


Por Clarice Lispector, em 'Correspondências - Clarice Lispector'. Organização de Teresa Montero. Editora Rocco.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

cor de Rosa (Fragmentos 12)

...nós dois. A gente dava passeios (...) Era um delém que me atirava para ele - o irremediável extenso da vida (...) E eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação (...): eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que o coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende.
João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'

GUERRA

Criança, certos céus aguçaram minha ótica: todos os caracteres matizaram minha fisionomia. Os fenômenos me emocionaram. - Hoje, a inflexão eterna dos momentos e o infinito das matemáticas me perseguem por este mundo onde suporto todos os sucessos civis, respeitado pela infância estranha e por imensos carinhos. - Sonho com uma Guerra, de direito ou de força, com uma lógica nada previsível.
Tão simples quanto uma frase musical.
Por Arthur Rimbaud
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, em 'Iluminuras'.
(Guerra ao cor-de-rosa, inclusive, porque eu D-E-T-E-S-T-O essa cor!!!)

segunda-feira, 30 de março de 2009

Conversa de Bandejão

"O amor é quando o botão da vida está ligado".

Dessa vez, não tenho referência bibliográfica precisa. Um amigo letreiro,
Fábio Sanchez, foi quem citou a pérola, atribuindo-a à Clarice... Nossa!.... Vou tentar descobrir em qual obra. Aliás, lispectorianos(as) de plantão convocados(as): alguém sabe?

sexta-feira, 20 de março de 2009

A literatura da libertação

Afinal, digam-me os senhores com suas luzes e sua experiência, onde está a verdade, a completa verdade? Qual a moral a extrair desta história por vezes salafrária e chula? Está a verdade naquilo que sucede todos os dias, nos quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição? Como se elevou o homem em sua caminhada pelo mundo: através do dia a dia de miséria e futricas, ou pelo livre sonho sem fronteiras nem limitações? Quem levou Vasco da Gama e Colombo ao convés das caravelas? Quem dirige as mãos dos sábios a mover as alavancas na partida dos esputiniques, criando novas estrelas e uma Lua nova no céu desse subúrbio universo? Onde está a verdade, respondam-me, por favor; na pequena realidade de cada um ou no sonho imenso humano? Quem a conduz pelo mundo a fora, iluminando o caminho do homem? O Meritíssimo Juiz ou o paupérrimo poeta?
Por Jorge Amado, em 'Os velhos marinheiros'.

terça-feira, 17 de março de 2009

cor de Rosa (Fragmentos - 11)

Ele não existe (...) Ao que recebi de volta um adêjo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades - de pancada (...) Aí podia ser mais? A peta eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!
Por João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'.

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

Guimarães de novo, no Sertão... rs

Nosso tempo - Fragmentos

VII

(...) Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam
..............................[ ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'A Rosa do Povo'