quinta-feira, 27 de outubro de 2011

História verídica

A Samyra, quando pequena,

Parecia um despertador

Mas eu acordava antes

Ao ouvir seus passos desengoçados

Fazendo barulho pelo corredor

A picareta pulava diante da porta,

até alcançar a maçaneta

Entrava no quarto e me sacudia

- Acorda, tia!

- Samyra, o que é?

- Vamos para a sala, quero tomar café!

- Samy, é muito cedo, não seja mala...

- Quero tomar café na sala!

E assim começava o meu dia -

Cheio de preguiça e alegria.

Com ternura, a pequena tecia

Doces versos cotidianos,

Paz e doçura para minha poesia

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

*

Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.

De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, pra que nos não tome
Do pulso, e nos arraste.

E vivamos assim,
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis.

Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
‘Scolherrnos do que fomos
O melhor pra lembrar
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.


Por Fernando Pessoa, como Ricardo Reis

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim
.

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'O Corpo'

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A casa materna

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna.

[...]

As coisas vivem como em prece [...]. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente.

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô.

[...]

A casa materna se divide em dois mundos: o térreo onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo, há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roqueford amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta – pois não há lugar mais propício para uma boa ceia noturna. [...] Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe porque queima às vezes uma vela votiva.

[...]

Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

Por Vinícius de Moraes, em ‘Para viver um grande amor’

Coisas que são

O homem que pensa

Tem a fronte imensa

Tem a fronte pensa

Cheia de tormentos.

O homem que pensa

Traz nos pensamentos

Os ventos preclaros

Que vêm das origens.

O homem que pensa

Pensamentos claros

Tem a fronte virgem

De ressentimentos.

Sua fronte pensa

Sua mão escreve

Sua mão prescreve

Os tempos futuros.

Ao homem que pensa

Pensamentos puros

O dia lhe é duro

A noite lhe é leve:

Que o homem que pensa

Só pensa o que deve

Só deve o que pensa.

Poema para Gilberto Amado - Por Vinícius de Moraes, em ‘Para viver um grande amor’

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

RELATÓRIO EM FORMA FECHADA

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam

Por Gastão Cruz, em 'A moeda do tempo'