sábado, 28 de fevereiro de 2009

Quadras da Cecília

Os remos batem nas águas:
têm de ferir para andar.
As águas vão consentindo -
esse é o destino do mar.
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Passarinho ambicioso
fez nas nuvens o seu ninho.
Quando as nuvens forem chuva,
pobre de ti, passarinho.
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Por Cecília Meireles, em 'Viagem'

cor de Rosa (Fragmentos - 10)

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva da outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. (...) Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho de Zé Bebelo (...) que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania e farta bobice, e fato é.

Por João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'.

América (Fragmento)

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio
.............................[de conhecimento.
.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco,
.................[percorrem teus caminhos, América.
.
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Esses homens estão silenciosos mas sorriem de tanto
..............................[sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.
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Por Carlos Drummond de Andrade,
em 'A Rosa do Povo'

Coisas que são - 2

Mas é preciso escolher: viver ou narrar.
(...)
Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável.
(...)
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. (...) Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.
E o relato prossegue às avessas: os intantes deixaram de se empilhar um sobre os outros ao acaso, foram abocanhados, pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede (...). As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo o que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não as escolhia.
Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma viuda que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.
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Por Jean-Paul Sartre, em 'A Náusea'
Tradução: Rita Braga

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Amanhecem de novo as antigas manhãs que não vivi jamais...

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'Campo de Flores'

Idéias que se completam

ESSA CONFUSÃO BABILÔNICA

Essa confusão babilônica das palavras
Vem de que são a língua
De decadentes
O fato de não mais os entendermos
Vem de que não mais adianta
Entendê-los.
De que adianta
Contar aos mortos como teriam
Vivido melhor. Não procure mover
Um morto enrijecido
Fazê-lo perceber o mundo.
Não brigue com aquele pelo qual
Os jardineiros já esperam.
Melhor ser paciente.


*

SOBRE A ATITUDE CRÍTICA

A atitude crítica
É para muitos não muito frutífera
Isto porque com sua crítica
Nada conseguem do Estado.
Mas o que nesse caso é atitude infrutífera
É apenas uma atitude fraca. Pela crítica armada
Estados podem ser esmagados.

A canalização de um rio
O enxerto de uma árvore
A educação de uma pessoa
A transformação de um Estado
Estes são exemplos de uma crítica frutífera
E são também
Exemplos de arte.

Ambos por Bertold Brecht,
em ‘Poemas 1913-1956 – Seleção e Tradução de Paulo César de Souza’

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Poema...

Você é mais doce
que um bombom Godiva
- ela disse e sorriu
E eu que não
gosto de chocolate
deitei minha mente
imaginativa...
Às vezes a vida
tem rumo certo
horário de chegada
e partida
vapor de locomotiva
Outras nem tanto
sem riso ou encanto
uma vida decorativa
Mas quando te vejo
meu peito queima
tal qual água-viva
E a sua boca bem desenhada
me deixa parado
extasiado
numa emoção primitiva
Mas logo a razão aparece
- e que coisa engraçada!
Apaga-se o fogo
e aos poucos se esvai
a vontade imperativa

Outra do meu amigo-poeta,
Gabriel Conte Quiliconi

Coisas que são (?) - 1

A poesia está guardada nas palavras – é tudo o que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre o ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
Insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.


Por Manoel de Barros
*Mais uma contribuição do amigo e consultor literário Norival Leme Jr.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

POEMETO IRÔNICO

O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...

Curiosidade sentimental
Do seu aroma, da sua pele.
Sonhas um ventre de alvura tal,
Que o linho fique ao pé dele.

Dentre os perfumes sutis que vêm
Das suas charpas, dos seus vestidos,
Isolar tentas o odor que tem
A trama rara dos teus tecidos.

Encanto a encanto, toda a prevês.
Afagos longos, carinhos sábios,
Carícias lentas, de uma maciez
Que se diriam feitas por lábios...

Tu te perguntas, curioso, quais
Serão seus gestos, balbuciamento,
Quando decerdes nas espirais
Deslumbradoras do esquecimento...

E acima disso, buscas saber
Os seus instintos, suas tendências...
Espiar-lhe na alma por conhecer
O que há sincero nas aparências.

E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.

Por Manuel Bandeira,

em "Os melhores poemas de Manuel Bandeira
- Seleção de Francisco de Assis Barbosa"

Clarice, sobre escrever...

Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a.

Por Clarice Lispector, em 'Água Viva'.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

***

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

(...)
Por Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Angústia

Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
-
Por Graciliano Ramos, em 'Angústia'.

::

HOJE NÃO PASSA
DE UM VASO
QUEBRADO
NO PEITO
E GRITO...

Por Toninho Horta, em 'Beijo Partido'.
(A mehor interpretação é a do Milton Nascimento...)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sou

Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra.
Um esquecimento, um eco, um nada.

Jorge Luis Borges, em "A Rosa Profunda"