domingo, 14 de junho de 2009

Matéria de Poesia

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância servem para a poesia.

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As coisas que não levam a nada têm grande importância.

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Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde dos pássaros,
serve para a poesia.

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As coisas jogadas fora têm grande importância -
como um homem jogado fora.

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Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita,
pisa e mija em cima, serve para a poesia.

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Por Manoel de Barros, em Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda)*

*Citações retiradas do encarte do cd de Egberto Gismonti - Música de Sobrevivência. Outro agradecimento, por outra dica do Fábio R.

Coisas que são - 3

Será possível, eu me pergunto, estudar um pássaro tão intimamente, observar e catalogar suas peculiariades nos mais diminutos detalhes, a ponto de ele se tornar invisível? [...] Eu acredito que, ao nos aproximarmos de nossos objetos de estudo com a sensibilidade de estatísticos e disseccionistas, nós nos distanciamos cada vez mais do maravilhoso e fascinante planeta da imaginação cuja gravidade nos atraiu, antes de mais nada, aos nossos estudos.
Isto não quer dizer que devamos deixar de estabelecer os fatos e verificar nossas informações, mas apenas sugerir que, a menos que possam ser imbuídos da clareza da percepção poética, estes fatos permanecerão como jóias opacas; pedras semipreciosas que mal valem o trabalho de se coletar.
[...]
Alguma faceta da experiência tocou uma corda em mim, forjou uma conexão entre meu adulto insensível e combalido com a criança que se deitava sob a débil luz das estrelas enquanto os grandes caçadores da noite encenavam dramas cheios de fome e morte no ar opaco sobre mim.
Um ímpeto de vivenciar, em vez de simplesmente registrar, acendeu-se novamente em minha pessoa, dando início aos processos mentais e à auto-avaliação que levou a este artigo.
Como ressaltei antes, longe de mim sugerir que eu imediatamente tenha abandonado todo empenho acadêmico e pesquisa próprios do campo a fim de fugir e levar uma existência primordial e nua nas florestas. Pelo contrário: eu me lancei nos estudos de meu assunto preferido com fervor renovado, capaz de ver os fatos áridos e as descrições desapaixonadas sob a mesma luz transformadora que os havia favorecido na minha juventude. Uma compreensão científica dos movimentos belamente articulados e sincronizados de cada pena da coruja durante o voo, não impede uma apreciação poética do mesmo fenômeno. Na verdade, ambos se intesificam mutuamente, um olhar mais lírico empresta aos dados gélidos uma paixão da qual eles, havia muito, tinham se divorciado.

Por Alan Moore, em 'Watchmen'*

* Essa postagem é um dos muitos frutos colhidos por mim graças à contribuição de Fábio Rodrigues, de seu vastíssimo repertório, e à sua constante presença em meus dias. A ele, agradeço por esse trecho e por incontáveis outras coisas que aprendo a enxergar pela precisão de seu olhar.

sábado, 13 de junho de 2009

O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade

LEMBRETE

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Por Carlos Drummond de Andrade,
Em 'Declaração de Amor - Canção de namorados'

quinta-feira, 4 de junho de 2009

NÃO HÁ PIOR ANGÚSTIA QUE A ESPERANÇA

Para um sistema, obter a indiferença geral representa uma vitória maior do que qualquer adesão parcial, por mais considerável que seja. E, na verdade, é a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; as consequências disso já são conhecidas.
(...)
Os projetos que queremos combater foram solidamente inscritos conforme os únicos princípios agora em circulação; portanto, eles parecem arraigados, inevitáveis e tranquilamente instalados nos fatos!
(...)
Essas classes (ou essas castas) jamais cessaram de agir de suplantar, de espreitar, nem de ser solicitadas, como tentadoras, detentoras de seduções. Seus privilégios se tornam objetos de fantasias, dos desejos da maioria, até mesmo muito daqueles que, sinceros, diziam combatê-los. O dinheiro, a ocupação de pontos estratégicos, os postos a distribuir, os vínculos com outros poderosos (...) a comodidade, o luxo são alguns exemplos dos quais nada pode separá-las.
(...)
Fora do clube liberal, não há salvação. Os governos sabem disso, já que se submetem àquilo que representa, sem dúvida, uma ideologia...
(...)
A era do liberalismo, que soube impor sua filosofia sem ter realmente que formulá-la e nem mesmo elaborar qualquer doutrina, de tal modo estava ela encarnada e ativa antes mesmo de ser notada. Seu domínio anima um sistema imperioso, totalitário em suma, mas, por enquanto, em torno da democracia e, portanto, temperado, limitado, sussurrado, calafetado, sem nada de de ostentatório, de proclamado. Estamos realmente na violência da calma.
Citações do livro 'O Horror Econômico' de Viviane Forrester.