domingo, 5 de agosto de 2018

Da espera

Sobre a revelação:

Perdi a conta de quantos poemas e canções traduzem uma das piores, senão a pior, condição [predominantemente] feminina: o lugar de espera. Sempre fico indignada quando me percebo neste lugar e faço de tudo para fugir dele, tal como a personagem do conto que li ontem. Neste livro, o título de cada conto é o nome de uma mulher - imagino que todas sejam pretas. Uma história é mais inquietante que a outra.

A tela - delicadíssima - é uma das minhas preferidas da Pinacoteca do Estado de SP.

***************************************************

"My sister, quem tem os olhos fundos começa a chorar cedo e madruga antes do sol para secar sozinha as lágrimas. (...) Nada me garante que a espera pode me conduzir ao que quero. Na espera, temo que os dias me vazem entre os dedos. Só quem tem iamini**, primeiramente em si mesmo, se lança pelos caminhos do mundo. Digo mesmo que o tempo é curto, por isso, desde menina, sempre corri.

Por Conceição Evaristo, no conto 'Mary Benedita', do livro 'Insubmissas lágrimas de mulheres'

**Iamini - pelo que pesquisei, é "acreditar", "crença" no idioma suaíli.


*Saudade, Almeida Júnior. Acervo Permanente da Pinacoteca do Estado de SP.

MISCASTING

"A palavra é inglesa: miscast. (...) quando ator e papel não combinam. Quando o ator não está preparado ou não é ideal para aquele papel.
Não fomos todos um pouco miscast em nossos próprios papéis, em nossa novela que às vezes parece interminável?"
Por Ricardo Domeneck, na apresentação do livro "Nuvens", da Hilda Machado. Editora 34.


MISCASTING

"So you think salvation lies in pretending?"
Paul Bowles

estou entregando o cargo
onde é que eu assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus aforntas
estou entregando o cargo
onde é que eu assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que se abre este champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída

agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante era uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o Teatrinho Troll colocado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga


Por Hilda Machado, em Nuvens. Editora 34.

Para compreender o Brasil


Sobre a revelação:

Três trechos de dois livros distintos me foram decisivos para a compreensão de nossa sociedade e para a construção do que se tornaria a minha ideia de Brasil. 

Joaquim Nabuco (1849-1910), que acompanhou o processo de "abolição" gradual da escravatura, desde a Lei Eusébio de Queirós (1850), passando pela Lei do Ventre Livre (1871) até a Lei Áurea (1888), já antevia o corrompimento que se instauraria na sociedade brasileira em decorrência do processo de subjugação de uma raça por outra. 

De igual modo, Darcy Ribeiro tratou do tema em um dos livros mais importantes sobre a formação da sociedade brasileira. Já na época em que este livro foi publicado (1995), ele explicava as origens de nossa constituição como povo e denunciava a crise institucional que já assolava o Brasil.

********************************************

"A escravidão é como um desses venenos que se infiltram pelo perfume: ela se infiltra pelo egoísmo. Depois de se haver introduzido na sociedade e de ter alimentado uma raça à custa da outra, ela corrompe ambas. 
Duas palavras únicas temos a dizer a respeito: que vícios não deve ter uma alma que obedece, que está sempre curva e humilhada, que rasteja diante de um homem? que às vezes é a encarnação de todos os crimes? 
Que vícios, por outro lado não deve ter aquela que está acostumada a mandar e não ser mandada, a castigar homens como animais, a contemplar a máxima degradação da nossa natureza, a satisfazer brutalmente a todos os seus caprichos? (...) o que é mais degradante - a baixeza deste ou a altivez daquele? 
(...) 
O que afronta mais a justiça o obedecer ou um mandar no outro? (...) açoitar ou ser açoitado? O que é mais criminoso, anuir a que suas filhas formem o serralho do senhor, ou deflorar pobres mulheres, que não têm guarda, nem proteção? (...) O que é mais cínico, viver na promiscuidade ou organizar a promiscuidade no interesse da reprodução?"

Em "A escravidão", Joaquim Nabuco.

***********************************************************************


"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária." 

"Ultimamente a coisa se tornou mais complexa porque as instituições tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrina. A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa, impondo padrões de consumo inatingíveis e desejos inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações." 

Por Darcy Ribeiro, em "O povo brasileiro".