quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Montaigne, sobre 'ser'

Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal, avarento, pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra.

Montaigne
Por Sérgio Milliet, em 'Ensaios de Montaigne'

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Flaubert e Clarice...

Seu par de olhos não basta; o quadro visto através deles, por si mesmo, é uma pobre coisa, pois ela só pode ver o que sua mente é capaz de apreender; e isso tampouco lhe faz justiça, uma vez que ela mesma, em grande parte, é a criação das coisas que a cercam.
Por Gustave Flaubert, em 'Madame Bovary'
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Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes. Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa compreensão, pois viver é somente a altura a que posso chegar - meu único nível é viver.
[...]
Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E, sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.
Por Clarice Lispector, em 'A Paixão Segundo G.H.'
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Triple Self-Portrait, por Norman Rockwell,
pintor americano - 1894-1978

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O HAVER

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio

[...]

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

[...]

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido

[...]

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

[...]

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

[...]

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Por Vinícius de Moraes, em 'Jardim Noturno'

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Quadra

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

Por António Aleixo

terça-feira, 18 de novembro de 2008

cor de Rosa (Fragmentos - 8)

Ele (...) era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte - assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível (...) Eu queria que ele gostasse de mim.
(...)
Via os olhos dele, produziam uma luz. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele(...) - "Você também é animoso..." - me disse. Amanheci minha aurora.
(...)
Muita coisa importante falta nome.
(...)
Por que foi que eu conheci aquele Menino? (...) Sonhação - acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino eu pensava, eu acho que. Mas, para que? por que?
Por João Guimarães, em 'Grande Sertão: Veredas'

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

INVERNO

Choveu tanto sobre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a força
de buscar estradas antigas.

Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sobre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!

Pode ser que o sol se levante
sobre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.

Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?

A primavera foi tão clara
que se viram novas estrelas,
e soaram no cristal dos mares
lábios azuis de outras sereias.

Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e seda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sede.

Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.

Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não pôde achar nenhum motivo...

Por Cecília Meireles, em 'Palavras e Pétalas'
Organização: Antonio Carlos Secchin

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

PERPLEXIDADE

Não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.

Por Antonio Cicero, em 'A Cidade e os Livros'.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O rapaz e a moça trocaram um olhar em que faiscaram jóias de diversos tamanhos. A maior delas era a cumplicidade.

Por Marçal Aquino, no conto 'Dia dos Namorados'
(do livro 'Geração 90: Manuscritos de Computador' -
Organização Nelson de Oliveira)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Por vezes, não raro...

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

Por Eucanaã Ferraz, em Desassombro