terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Recomeço

NASCER

Nascer
outra e outra vez
indefinitivamente
como a planta sempre nascendo
da primeira semente;
pensar o dia bom
até criar a claridade
e nela descobrir
a primeira sílaba
da primeira canção

****************************

PROCURO UMA ALEGRIA

Procuro uma alegria
na mala vazia
do fim do ano
e eis que tenho na mão
- a flor do cotidiano -
o vôo de um pássaro
e de uma canção

Por Carlos Drummond de Andrade, em Poesia Errante, Editora Record

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

OLINDA WISCHRAL

.....pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
.....não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
.....gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
.....que não me deixam dormir

Por Paulo Leminski, em 'O ex-estranho', Editora Iluminuras.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

cor de Rosa - 17

Medo tenho é porém por todos (...) O que há é uma certa coisa - uma só, diversa para cada um - que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons - todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar a alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha (...) O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem - que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo...

Por João Guimarães Rosa, em 'Grande sertão: veredas'.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

DECLARAÇÃO

Quantas vezes lhe declarei o meu amor?
Declarei-o verbalmente inúmeras vezes
e o declaram todos os meus gestos tendentes
a você: a minha língua, a brincar com o som
do seu nome, o declara; e o declaram
os meus olhos felizes quando o veem chegar
feito um presente e de repente elucidar
a casa inteira que, conquanto iluminada,
permanecia opaca sem você; e quando,
tendo apagado todas as lâmpadas, juntos,
no terraço, nos consignamos aos traslados
dos círculos do relógio do céu noturno
ou aos rios de nuvens em que nos miramos
e nos perderemos, declaro-o no escuro.

Por Antonio Cicero, em "A cidade e os livros".

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Santo de casa...

(...) tenho refletido bastante sobre a vontade que o homem sente de ampliar seu horizonte, de fazer novas descobertas e errar mundo afora; e pensei também a respeito da sua tendência a submeter-se docilmente a uma existência limitada, a seguir vivendo nas trilhas do hábito, sem incomodar-se com o que acontece à sua direita ou esquerda.
[...]
Da mesma maneira, o mais irrequieto dos aventureiros acaba por desejar o retorno à pátria, encontrando em sua cabana, no regaço da esposa, entre os filhos e no trabalho para sustentá-los a felicidade que procurou em vão no mundo inteiro.

Por J.W. Goethe, em 'Os sofrimentos do jovem Werther'
Martins Fontes*, 2002

*Recomendo com veemência que os interessados por esta obra procurem por outra edição. O editor desta interfere, além do que poderia, no texto original e merece meu repúdio.

sábado, 25 de setembro de 2010

Nostalgia

- Estórias de antigamente é assim que foram há muito tempo?
- Sim, filho.
- Então, antigamente é um tempo, Avó?
- Antigamente é um lugar.
- Um lugar assim longe?
- Um lugar assim dentro.

Por Ondjaki, em 'Avó Dezanove e o segredo do soviético',
Companhia das Letras, 2009.

sábado, 14 de agosto de 2010

MOEDA DO TEMPO




Distraí-me e já tu ali não estavas

vendeste ao tempo a glória do início
e na mão recebeste a moeda fria
com que o tempo pagou a tua entrada.

Por Gastão Cruz, em ' a moeda do tempo e outros poemas'

Imagem por Maurício Takigutthi* (Fonte: http://www.takiguthi.art.br/)

*Houve uma exposição das pinturas deste artista no final do ano passsado, no Conjunto Nacional. Não me lembro de uma obra ter me marcado
tanto nos últimos tempos. Vale a pena conferir.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Fez bobagem

Meu moreno fez bobagem
Maltratou meu pobre coração
Aproveitou a minha ausência
E botou mulher sambando
[no meu barracão.
Quando penso que outra mulher
Requebrou pro meu moreno ver
Não dá jeito de sambar, dá
[vontade de chorar
E de morrer.
Deixou que ela passeasse na
[favela com meu peignoir
Minha sandália de veludo deu
[a ela pra sapatear
E eu bem longe me acabando,
Trabalhando pra viver
Por causa dele dancei rumba
[e fox-trot
Pra inglês ver

&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&

E fui adormecer feito um despacho,
Deitadinha no capacho
Na porta dos enjeitados.

Cresci, olhando a vida sem malícia...

Por Assis Valente e Ary Barroso

sábado, 24 de julho de 2010

A delicadeza das camélias



Diálogo entre concierge e ex-morador de um prédio de luxo...

"Sabe, ele diz, "não voltei para ver o apartamento, nem para ver as pessoas daqui. Nem garanto que me reconheceriam (...) Vim porque não consigo me lembrar de uma coisa que me ajudou muito, já quando estava doente e depois, durante a minha cura."
"E posso lhe ser útil?"
"Pode porque foi a senhora que me disse um dia o nome dessas flores. No canteiro, ali (ele aponta com o dedo o fundo do pátio), tem umas lindas florzinhas brancas e vermelhas, foi a senhora que plantou, não foi? E, um dia, lhe perguntei o que eram, mas não fui capaz de guardar o nome. E olha que eu pensava o tempo todo nessas flores, não sei por quê. São muito bonitas, e, quando eu estava mal, eu pensava nas flores e isso me fazia bem. Então passei perto daqui, há pouco, e pensei: vou perguntar à sra. Michel se ela sabe me dizer."
Ele espreita minha reação meio encabulado.
"Isso lhe deve parecer esquisito, não é? Espero que não fique com medo de mim e de minhas histórias de flores."
"Não", digo, " de jeito nenhum. Se eu soubesse o quanto faziam bem... teria posto por toda a parte!"
Ele ri como um menino feliz.
"Ah, sra. Michel, mas, sabe, isso praticamente salvou minha vida. O que já é um milagre! Então, pode me dizer o que é?"
(...)
"Sim", digo, "são camélias".
(...)
"Jean, você não imagina quanto estou feliz com a sua visita hoje", digo.
"Ah, é?", ele diz, espantado. "Mas por quê?"
Por quê?
Porque uma camélia pode mudar o destino.

Por Muriel Barbery, em 'A elegância do ouriço'

segunda-feira, 14 de junho de 2010

DESCOMPASSO

Bem entendido, o verdadeiro amor é excepcional, dois ou três em cada século, mais ou menos. No restante do tempo, há a vaidade ou o tédio. (...) Não tenho o coração seco, longe disso, mas, pelo contrário, cheio de ternura, e mais: tenho a lágrima sempre fácil. Só que meus impulsos sentimentais voltam-se sempre para mim e meus enternecimentos dizem respeito a mim. Não é verdade, afinal, que eu nunca tenha amado. Tive em minha vida pelo menos um grande amor, de que fui sempre eu o objeto. Sob esse aspecto, depois dos inevitáveis problemas da juventude, depressa me havia decidido: a sensualidade, e só ela, imperava em minha vida amorosa. Buscava sempre objetos de prazer e de conquista. (...)
Nessas relações, aliás, eu satisfazia ainda outra coisa, além de minha sensualidade: meu amor pelo jogo. (...)
Mudava muitas vezes de papel, mas se tratava sempre da mesma peça.

Por Albert Camus, em 'A Queda'

terça-feira, 8 de junho de 2010

Do amoroso esquecimento

Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Por Mário Quintana, em 'Espelho Mágico'

terça-feira, 4 de maio de 2010

DIALÉTICA

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Por Vinícius de Moraes

De Tom para Vinícius

Meu Vinícius de Moraes
Não consigo te esquecer
Quanto mais o tempo passa
Mais me lembro de Você

Cadê o meu poetinha?
Cadê minha letra, cadê?
Eu morro neste piano
De saudade de Você.

Do encarte do belíssimo CD 'Tom canta Vinícius - Ao Vivo' (Biscoito Fino 2009)
Com Paulo Jobim, Tom Jobim, Paula Morelenbaum, Jaques Morelenbaum e Danilo Caymmi.

Manoel por Manoel

"...Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores."

Da orelha do livro 'Menino do Mato', de Manoel de Barros

Uma ambição...

Naquele dia eu estava um rio.
O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio.
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio.
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
E escolhessem minhas árvores para cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.

Por Manoel de Barros, em 'Menino do mato', 2ª parte - Caderno de apreniz - nº 33.

terça-feira, 30 de março de 2010

ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

Às almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.

Por Carlos Drummond de Andrade em 'Claro Enigma'

terça-feira, 23 de março de 2010

PALAVRAS A UM POETA

A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e o calor dos outros seres te
......[interessam realmente
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia
.....[dos teus desaparecidos.
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de
.....[São João.

E hoje estão para sempre dormindo profundamente.
Da poesia feita como quem ama e quem morre
Caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza
Naturalmente
- Como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.

Por Manuel Bandeira

sexta-feira, 19 de março de 2010

Imagens...

"O tempo é composto de dois dias, um seguro, outro
........................................[ameaçador
e a vida é composta de duas partes, uma pura, outra turva.
Pergunte a quem urdiu as idas e vindas do tempo:
será que o tempo só maltrata a quem tem importância?
Acaso não se vê que a ventania, ao formar as tempestades,
não atinge senão as árvores de altas copas?
De tantas plantas verdes e secas existentes sobre a terra,
somente se apedrejam aquelas que têm frutos;
nos céus existem incontáveis estrelas,
mas em eclipse, só entram o sol e a lua.
Pois é, você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e não teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que sucede a torpeza."

Do 'Livro das mil e uma noites',
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche

sexta-feira, 12 de março de 2010

Borra

Esta tarde chove como nunca; e não
tenho ganas de viver, coração.

Esta tarde é doce. Por que não há de ser?
Veste graça e pena; veste de mulher.

Esta tarde em Lima chove. E lembro
as cavernas cruéis de minha ingratidão:
meu bloco de gelo sobre sua amapola,
mais forte que seu “Não sejas assim!”

Minhas violentas flores negras; e a bárbara
e enorme pedrada; e o trecho glacial.
E porá o silêncio de sua dignidade
com óleos ardentes o ponto final.

Por isso esta tarde, como nunca, vou
com este mocho, com este coração.

E outras passam; e vendo-me tão triste,
tomam um pouquinho de ti
na abrupta ruga de minha profunda dor.

Esta tarde chove, chove muito. E não
tenho ganas de viver, coração!

Por César Vallejo em Obra poética. Coordenadação de Américo Ferrari.

quarta-feira, 10 de março de 2010

PERMANÊNCIA

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no
...............................................................[galpão.

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'Claro Enigma'.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Embriague-se

É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que lhe quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se sem perdão. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser. Mas embriague-se. E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio lhe responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser o escravo mártir do Tempo, embriague-se; embriague-se sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser".

Por Charles Baudelaire

Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco [...]. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe [...]. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.

Por Ernest Hemingway, em 'O Velho e o Mar'

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Inscrição

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...

Por Camilo Pessanha em 'Clepsidra'.