quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.


Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.


Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!


Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.


Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.


Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!


Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...


Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!


Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...


Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.


Por Álvaro de Campos, em Poesia de Álvaro de Campos
Fernando Pessoa

terça-feira, 28 de outubro de 2008

*

Misturada entre as pedras
preciosas do mundo
Com um simples olhar
A você não confundo

Por Cartola, em 'Festa da Vinda'
Alumbramento 'desperto' pelo amigo e músico
Thiago França, a quem agradeço pela dica.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

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ESTOU SÓ, arrumo a flor de cinzas
no vaso cheio de maduro negrume. Boca-irmã,
falas uma palavra que sobrevive diante das janelas
e escala muda o que sonhei, em mim.

Eis-me na flor da hora murcha
e poupo uma resina para um pássaro tardio:
ele traz o floco de neve na pluma vermelho-vida;
o grãozinho de gelo no bico, e atravessa o verão.

Paul Celan
Por Claudia Cavalcanti, em 'Cristal'.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Nosso Tempo (1ª Parte)

I
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.


Por Carlos Drummond de Andrade, em 'A Rosa do Povo'

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

cor de Rosa (Fragmento im-possível)

Guimarães, novamente. Agora, um conto. Como de costume, encontram-se belos e encantadores fragmentos, mas, dessa vez...
Bem, se não exibisse o conto, inteiro, àqueles que porventura tiverem disposição para leitura, sentiria remorso. Primeiro, porque é curto e segundo, porque é precioso. Destaquei algumas frases (para quem for impaciente), mas a história, em si, é uma prece.
... Porque ninguém precisa acorrentar-se ao passado e à lógica das coisas. As histórias podem ser reinventadas...
*
*
*
DESENREDO
Do narrador a seus ouvintes:
- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes, bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se também que a ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e plena amplitude.
Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – idéia inata. Entregou-se a remir, a redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e de amar a gente não de desfaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o anatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil quanto refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada em realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeitos. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
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Por João Guimarães Rosa, em 'Tutaméia'.

Uma criança não reza, ela é uma oração.

Frase: Walt Whitman (1819-1892), poeta norte- americano (retirei da revista Caras).
Foto: Das minhas sobrinhas, porque sou tia-coruja...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

SONETO

Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Por Mário de Andrade

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Ética a Nicômaco (Fragmentos 3)

Ora, os homens corajosos agem tendo em vista a honra, mas a paixão os ajuda, ao passo que as feras agem sob a influência da dor (atacam porque foram feridas ou por estarem assustadas, já que nunca se aproximam de pessoas porventura perdidas na floresta). Não são corajosas, pois, impelidas pela dor e pela paixão, atiram-se aos perigos sem calcular os riscos. Se não fosse assim, até os asnos seriam corajosos quando estão famintos, pois nessa situação nem as pancadas conseguem afastá-los do pasto; e igualmente a luxúria leva os adúlteros a cometerem muitos atos audaciosos. Todavia não são corajosas essas criaturas que são impelidas para o perigo pelo sofrimento ou a paixão.
(...)
O homem magnânimo não se expõe a perigos por motivos triviais, nem tem amor pelo perigo, pois dá valor a poucas coisas; todavia, enfrentará os grandes perigos, e nesses casos não se deterá com a preocupação de salvar sua vida, sabendo que há condições em que ela não é digna de ser vivida.
(...)
Ele também não é dado a conversas fúteis; não fala nem de si mesmo nem dos outros, pois não lhe interessam nem os elogios que lhe possam fazer nem as censuras dirigidas aos outros; nem é amigo de elogiar nem de falar mal dos outros, nem mesmo dos seus inimigos, salvo por desdém. Quanto às coisas que ocorrem inevitavelmente ou que são de pouca importância, é, entre todos, o menos propenso a lamentar-se ou a pedir favores, pois só os que dão muita importância a tais coisas agem dessa maneira.
(...)
Além disso, é próprio de um homem magnânimo um andar lento, uma voz profunda e uma entonação uniforme, pois aquele que se preocupa com poucas coisas não é apressado, nem é agitado o homem para quem alguma coisa é grande, enquanto a voz estridente e o andar precipitado são frutos da pressa e da agitação.
(...)
A magnanimidade relaciona-se com a honra em grande escala.
Aristóteles
Por Pietro Nassetti

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O Ator

Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.

Por Eucanaã Ferraz, em 'Cinemateca'

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sobre a Informação

Com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação (...) a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa: “Para meus leitores, o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante do que uma revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira por uma comunicação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com os espírito da narrativa. Se a arte da narrativa hoje é rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres de histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras, quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa consiste em evitar explicações. (...) [O leitor] Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.
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Por Walter Benjamin (1892-1940) - Filósofo, crítico literário, membro da Escola de Frankfurt
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"- Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr.
E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!
Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff.
-Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia."
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Por Eça de Queirós, em 'A Cidade e as Serras'

terça-feira, 7 de outubro de 2008

ÁRVORE ADENTRO

Cresceu em minha fronte uma árvore.
Cresceu para dentro.
Suas raízes são veias,
nervos suas ramas,
Sua confusa folhagem pensamentos.
Teus olhares a acendem
e seus frutos de sombras
são laranjas de sangue,
são granadas de luz.
.........................Amanhece
na noite do corpo.
Ali dentro, em minha fronte,
a árvore fala.
.................Aproxima-te. Ouves?

Octavio Paz
Por Antônio Moura

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

DEPOIS DUM SONHO

Não deixaste o deserto mas

árvores na casa Em sonho és

o sedutor arbusto reflectindo

para sempre o meio-dia O sol

porém desfaz-se quando as pálpebras

num ardor se entreabrem e te ocultas

nos ângulos do quarto Ausente

és pois o centro

feroz da minha vida transitas

como serpente fria no ventre

contraído escondes-te na

floresta que sem cessar se expande

onde dormíamos E erras

nos limites duma casa

destruída por raízes


Por Gastão Cruz

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?

... nós que guardamos o grito em segredo inviolável.
Por Clarice Lispector, em 'A Paixão Segundo G.H.'

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sobre sonhos...e luxo.

Sinhá Vitoria desejava possuir uma cama igual à de seu Tomas da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.
(...)
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinhá Vitoria respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinhá Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinhá Vitoria ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado. Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da casa.
(...)
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu am boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Por Graciliano Ramos, em Vidas Secas