sexta-feira, 17 de outubro de 2008

cor de Rosa (Fragmento im-possível)

Guimarães, novamente. Agora, um conto. Como de costume, encontram-se belos e encantadores fragmentos, mas, dessa vez...
Bem, se não exibisse o conto, inteiro, àqueles que porventura tiverem disposição para leitura, sentiria remorso. Primeiro, porque é curto e segundo, porque é precioso. Destaquei algumas frases (para quem for impaciente), mas a história, em si, é uma prece.
... Porque ninguém precisa acorrentar-se ao passado e à lógica das coisas. As histórias podem ser reinventadas...
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DESENREDO
Do narrador a seus ouvintes:
- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes, bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se também que a ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e plena amplitude.
Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – idéia inata. Entregou-se a remir, a redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e de amar a gente não de desfaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o anatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil quanto refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada em realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeitos. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
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Por João Guimarães Rosa, em 'Tutaméia'.

6 comentários:

Anônimo disse...

nossa, moça que mudou a vida...
você coloca várias coisas bonitas aqui... eu vou te acompanhar agora!
tou afim de uns alumbramentos... umas alumbrâncias...
e vou sim combinar uma aula contigo!
um beijo!
(eu volto.)

Thai disse...

Olá, Edu!
Obrigada por sua visita.
Algo me diz que alguém vai pelo mesmo caminho...rs
Quero contribuições suas (ainda que sejam do Mário Quintana...rs). Ah, vc acredita que minha amiga me presenteou com aquele livro que havia gostado? Obaaaaaa!!!
Beijos!

Thai disse...

PS. Ah e quanto à aula, a gente combina. Veja o dia que for melhor pra vc e me dê um toque. Espero que isso lhe ajude a tomar a decisão correta...;)

Anônimo disse...

me passa teu e-mail...?
o meu é specullum@ibest.com.br

Anônimo disse...

Ah, esse é o tal com...
realmente, fantástico.
beijo

Anônimo disse...

ops... esse é o tal conto!
(você faz idéia, com minha chatice virginiana, o quanto eu tô olhando o post anterior e querendo apagá-lo?)