terça-feira, 23 de outubro de 2012

Eu nem sempre quero ser feliz*

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural... 


Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ... 


O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

Por Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em 'O Eu profundo e os outros Eus', Editora Nova Fronteira.

* Este não é o título do poema.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O amor acaba?

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Por Paulo Leminski

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Chiquinha Gonzaga, sim, senhor!



Para mim, 'Chiquinha Gonzaga' é, sem dúvida, a melhor minissérie brasileira de todos os tempos. A trama, inspirada numa obra biográfica, vai muito além de um drama romântico e familiar: contextualiza no universo histórico e social brasileiro, a trajetória de uma mulher que idealizava a criação de um ritmo que misturaria a música negra com a europeia. ‘A polca com batuque de lundu e o lundu com marcação de polca’, segundo suas palavras. 

A sociedade do século XIX é retratada com maestria pela obra televisiva, à medida em que são abordados temas como a efervescência abolicionista dos intelectuais e artistas, a aristocracia militar, a Guerra do Paraguai, a abolição da escravatura, a queda da monarquia, a instauração da república etc.

 Chiquinha nasceu em 1847, ano de uma época quando as mulheres eram obrigadas a viver à sombra e à mercê de seus pais e maridos, em nome da preservação da família e de uma boa reputação. Trabalhar fora, sair desacompanhada, escolher o próprio casamento, definitivamente, não eram prerrogativas concedidas às damas  brasileiras . 

Logo no início do primeiro episódio, Francisca, ainda bem jovem, é apresentada à sociedade em um baile de gala, mas seu pai tem um problema e precisa partir mais cedo. Duque de Caxias (ainda marquês, na época) coloca então, parte da Guarda Nacional, responsável por sua segurança pessoal, à disposição de Francisca para escoltá-la na volta para casa, a fim de que ela pudesse desfrutar da festividade até o seu término. Chiquinha, durante o regresso, avista uns amigos que estão a caminho de um terreiro de lundu. Sem hesitar, obriga a Guarda a acompanhá-los ao inusitado passeio, dança e toma aguardente com os negros até o dia raiar.

Não é necessário qualquer esforço para imaginar o impacto que causavam as atitudes espontâneas desta filha de militar. Sua honestidade e dignidade jamais foram usadas como argumentos para lhe redimir. Os parâmetros sociais simplesmente não admitiriam uma mulher boêmia, freqüentadora de saraus de música e que resolveu desfazer seu primeiro casamento, em nome do amor verdadeiro e da liberdade. 

Independentemente da época, quem se aventura a romper a barreira do convencional ou do socialmente aceito, paga um alto preço. Com nossa heroína, não foi diferente. Foi ‘obrigada’ a se separar de quase todos os seus filhos, sendo renegada por sua família, ficou desempregada, passou por privações materiais e sofreu preconceitos de todas as ordens (era mulher, separada, boêmia, abolicionista, musicista e buscava seu próprio sustento).Mesmo diante de todas as dificuldades, suas crenças e seus ideais nunca foram abandonados.

Para quem não agüenta mais a dramaturgia brasileira destituída de qualquer valor e os personagens da vida real, cada vez mais ordinários e massificados, a vida de Francisca Ediwiges Gonzaga é uma empolgante inspiração. 

Se Clarice tivesse comentado a respeito da vida de Chiquinha, certamente, não a classificaria como uma pessoa best-seller*, mas vou me limitar a supor o fato, em vez de atribuir-lhe falsas palavras, mais uma vez.

*Pessoa best-seller foi um termo adotado por Clarice para descrever à sua irmã, Tânia, as pessoas com quem convivia em Berna, por ocasião da missão diplomática de seu marido. “Na verdade o que eles são mesmo é best-sellers... as opiniões deles são best-sellers, as ideias deles são best-sellers.” O trecho completo faz parte deste blog e está no marcador ‘Clarice Lispector’.