sábado, 28 de maio de 2016

A culpa é sua, o conto é meu

Na São João. A avenida. Maria precisava de ajuda. Filmar o projeto. “Qual o samba de sua vida?” Me prontifiquei.

Estação República, saídas fechadas. Um diacho. Não encontrava. Perdida desde sempre, acho. Até no caminho certo. Dei com a porta do elevador. Para deficientes físicos. Que eu não sou. Entrei, reclamei. Pra me desculpar. “Não devia estar aqui, mas essa estação tá um beco sem saída. Não tem sinalização”. O cego respondeu: “Tem, sim... você não viu, não?” Plim! A porta do elevador. Se abre o cego “você quer ir pra onde? ” Com a bengala, se ofereceu. Agradeci. Vi. Maria riu. “É verdade esse cego te guiando? ” Seguimos gargalhando.

Tarde de domingo. Virada cultural. Sol. Teresa Cristina cantando. Cartola. “Deixe-me ir preciso andar / vou por aí a procurar / rir pra não chorar”. E bis! A música do fim. Câmera, tripé. O público marchava. Era ele. Na multidão? Meu olho não acreditava. Era ele! Mãos entrelaçadas. Com outra.  Caminhava.  Mãos afastadas. Seus dedos procuraram. Triscando o lado da saia. Do birote do cabelo, a mão dela desceu. Espalmou. Alguma coisa aconteceu. No meu coração. Cruzando a São João. Não era Caetano. Era Gil. Olha a faca! O espinho da rosa, o sorvete.

Um espeto. No peito. Maria, ele tem que me ver. E o que você vai fazer? Corri. Ele na minha frente. Caminhando. Com outra. Não podia ser assim. Por trás. Saí de perto. Lado oposto. Mais rápido. Passei uma lonjura, muito na frente. Voltei caminhando. Em sua direção. Tremi, sorri, cumprimentei. “E aí, tudo bem? ” “Oi, tudo em paz? O show acabou de acabar” Não me diga. “Eu vi um pedaço” Abreviei a prosa. Perdi o rebolado. E a fé no último pacto. De cinismo. Nós dois.

Quem é teu rei? Para mim, um último acorde - mandamento e som.

Fim. No outro show da tarde. Foco no projeto. Mas o espeto. “Qual é o samba da sua vida? ”  “Me fala qual é o samba da sua vida?” “Olha, amada, não posso falar disso, porque tô sofrendo de amor” “Não vem com essa. Acabei de ver meu moço com outra. E eu tô aqui, não tô?” “BAAAA-FOOO! Você tá brincando, não acredito! DEMÔÔÔÔNIOOOOOO, EXUUUUUUUUU, MALDIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIITOOOO! Me fala que você fez um escândalo, deu uma voadora nele.” Ri alto. Meu amigo desconhecido.  Teatral. Solto. Fluido. Do palco da vida. Aplaudi. De pé. Mas o espeto.

Depoimento, canção. As pessoas. As histórias. Conversava, perguntava, ouvia. Sentia. Percebia. O elo secreto. Revelado. Éramos todos irmãos. Parecidos. Dor, luta e fé. Num é que é? Chuva.
Gostar de beleza é religião. Mas o espeto. Melhor não alastrar, não chafurdar. Aprendi com o  Paulo. E servia pra qualquer matéria-prima. Podia transformar em raiva...

Ou em rima.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Quando um conto de fadas merece respeito

Maria, nem sei por onde começar. A contar. A minha história de amor. Quando ele, Meu Deus, entrou na lavanderia. Parecia propaganda de sabão. Tudo em minha volta ficou limpo, límpido, esse mundo cão.
- Pois não.
Cheiroso, nem olhou para o meu alvoroço. Nem sequer um pensamento. Leve. Ele, dentro de uma bolha. Eu, tão rastejante. Nada, a partir daquela manhã, foi a mesma coisa. Meu trabalho desandou. Boiou. Quase perdi o emprego.
Amor, Maria, amor.
Sabe o que é isso?
Fragrância de flor.
Comecei a usar blusinha curta. E a esperar. Toda a sexta atrás de sexta. O meu homem chegar. Sem olhar para o meu perfume, apenas ordenar: para lavar, secar e passar. A barba mal aparada dentro dos óculos de marca. Escuro. Sua língua rosa. Juro: eu mordiscava.
Que nada!
Nenhum aceno de verão. Inverno. Eu queria ele para meu marido, Maria, sério. Sabe galã de novela? Era o que era. A alma atlética dele. Miséria! Mulher como eu, sujinha e pobrinha, chance nenhuma. Como ganhar na lotérica.
Impossível!
Mas a gente não deve desistir.
Feito nódoa que a gente tira com sacrifício. Ali, esfrega. Torce, bate na centrífuga. O nosso destino. Um dia muda de cor.
Foi aí que tive a ideia.
Peguei o pentelho da sua cueca. Feito este, olhe. Não tenha nojo. Pelo grosso que eu levei para o Painho.
- Eu quero esse homem só pra mim.
- Minha filha, ele será seu, sim.
Foi o que meu orixá prometeu. E eu acreditei. Eu me agarrei nessa fé. Eu rodopiei e dancei, no batuque. Meu, só meu. Príncipe e rei.
E saiba você que não fiquei só nisso.
Pirei. Levei para a minha casa sua samba-canção. E sambei. Vestido dentro do corpo dele o meu umbigo. Eu vesti. E senti entre as minhas coxas as suas coxas. E, Maria, jura que não conta? Assim, melequei a roupa do cliente. Múltiplos orgasmos, entende? Paixão que foi me deixando quente e doente.
Veio um dia, na lavanderia, com a quenga. A namorada. Painho, por que não tira do meu caminho essa desgraçada? Mata ela afogada na água sanitária?
Casal tão feliz na frente do meu nariz. Ah! Meu pai! E quando casarem? E tiverem filhos ruivos e ricos, me diga. Sou eu quem vai lavar a bosta inteira da família? As fraldas do berço?
Nem pensar.
Algo teria de acontecer.
Minha nova ideia foi perder dinheiro.
Isso, Maria, dinheiro. Que eu não tinha. Fiz uma reservinha e, quando ele veio, paguei.
- encontrei no seu bolso.
Cinquenta reais.
Mentira!
Era só para ele ver o quanto eu valia. Nadinha. E eu poderia encontrar tantos tesouros para ele. Ao inferno eu iria, juro. Ao cu do mundo. Dourado.
Ele, espantado, agradeceu com um sorriso.
Maria, Maria!
Até hoje guardo na vista. Aquele primeiro sorriso, aberto... um sol todo para mim.
Banhando a natureza, enfim. Sacando as almas chorosas.
Essência de rosas, Maria.
Essência de rosas.
Daí por diante, melhorou um pouco. Ele já chegava e colocava óculos no peito, tesudo. E batia o olhar no meu olho. E falava um pouco mais felpudo: para lavar, secar e passar.
E o tempo foi passando e eu fui de novo lá:
- Painho, assim não dá.
- Você vai à casa dele.
- O quê?
- Isso não vai demorar.
Quantos pentelhos terei de resgatar do fundo do cesto para que isso aconteça? O pior foi quando numa sexta-feira, Maria, a maldita apareceu. A namorada azeda.
Veio deixar a trouxa dele e as calcinhas dela. De morango. Fui ao centro e gastei mais dinheiro. Comprei calcinhas iguais. Apertadinhas. De tudo que é frutinha. O que ela está pensando? Se sou eu, euzinha a única que cuida dos seus lençóis e das suas fronhas. Sonho com os seus sonhos. E durmo.
Que susto!
Era ele no telefone.
- Você poderia trazer o meu paletó?
- O quê?
- Aqui no apartamento?
- Como?
- Estou sem tempo.
Maria, para você ver como é a vida. Pura persistência.  Não tem essa de achar que não se pode misturar. Todo mundo acaba por girar na mesma máquina. Imensa.
Corri para a rua. Retoquei o batom. Feito puta. Ele prometeu uma gorjeta. Se eu lá fosse. E subisse.
- Eu tenho de subir.
Se o porteiro não me deixasse, haveria morte. Eu pularia no seu cangote, rasgaria o seu bigode. Não foi preciso. Entro no elevador como quem entra no futuro. Não mais pelos fundos. Bem que o Painho adivinhou. Era para ser de verdade, Maria, esse amor.
Chamei. Ele veio atender.
Não era ele...
Um careca, ora essa. Engano.
- Aqui, querida.
No mesmo corredor, na porta em frente,  esperava-me o senhor da minha vida.
- Ó o paletó.
Agradeceu e me deu (devolveu) dez reais. Calculei: agora, só me deve quarenta. Ora, ele que não pense que eternamente as coisas vão ficar assim. Neste chove-não-molha. Pedi água. Suei, falei que não estava me sentindo bem e desmaiei.
Isso que você ouviu, Maria, desmaiei. Despenquei feito vento quando bate numa pétala. Simulei.
Vi quando ele me despejou no sofá. Trouxe lencinho engomado e álcool. Como um pai, preocupado. Meu marido velho, para todo o sempre.
Fui acordando, brotando displicentemente.
- Onde estou?
- Melhorou?
Pedi só para descansar um pouco ali, no conforto. Almofadas  cheirando a sabão de coco. Enquanto ele vestia, no quarto, o seu paletó. Meu trabalhador. Senti-me sua esposa, àquela sala. Indisposta. Quem sabe, grávida?
De propósito, cerrei os olhos. Até que ele veio e me chamou. Bem perto, outra vez.
- Melhorou?
Eu não aguentei e puxei o seu corpo pela gravata. Com a cara mais lavada, sabe o que eu fiz? Maria, eu sou doida.
Dei-lhe um beijo desentupidor.
Parece que o mundo virou um ralo só.
E nós dois, sugados pelo mesmo destino.
Juntos desde aquele dia. Quem diria?
Escute bem, Maria. Se hoje é você quem lava a cueca de seu marido, amanhã, pode ser a dona da lavanderia.


Por Marcelino Freire, em ‘Roupa Suja’, conto extraído de Rasif – mar que arrebenta.