sexta-feira, 24 de julho de 2009

Nunca pensei que acabasse! Tudo parecia impregnado de eternidade

Por Manuel Bandeira, em 'Evocação ao Recife', poema de 'Libertinagem' - adaptado.

cor de Rosa (Fragmentos - 14)

Transcreverei abaixo alguns dos melhores trechos de 'Miguilim' (Campo Geral), novela que fala sobre a infância...
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Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo - o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória...
*
Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé.
*
Os olhos de um verde tão menos vazio - era uma luz dentro de outra, dentro de outra, dentro de outra, até não ter fim.
*
A gente - essas tristezas.
*
Mãitina estava pondo ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando carinhos (...) O que Mãitina falava: era no atrapalho da linguagem dela, mas tudo de ninar, de querer-bem, Miguilim pegava um sussu de consolo, fechou os olhos para não facear com os dela, mas quisesse, podia adormecer inteiro, não tinha medo nenhum, ela falava a zúo, a zumbo, a linguagem dela era até bonita, ele entendia que era só de algum amor...
*
Miguilim, sobre seu irmão, Dito:
Era capaz de brincar com Dito a vida inteira, o Ditinho era a melhor pessoa, de repente, sempre sem desassogo.
*
Mas chegava a noite de dormir, Miguilim esperdiçava as coisas todas do dia. O Dito guardou debaixo da cama uma garrafa cheia de vaga-lumes. - "Miguilim, você hoje não tirou a calça." "-Amola não, Dito. Tou cansado." Mas antes tinha carecido de lavar os pés: quem vai se deitar em estado sujo, urubu vem leva.
*
Siarlinda contou estórias. Da Moça e da Bicha-Fera, do Papagaio Dourado que era um príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato. Contou estórias de sombração, que eram as melhores, para se estremecer. Miguilim de repente começou a contar estórias titradas da cabeça dele mesmo (...) Mãe disse que Miguilim era muito ladino, depois disse que o Dito também era. Tomezinho desesperou, porque Mãe tinha escapado de falar o nome dele; mas aí Mãe pegou Tomezinho no colo, disse que ele era um fiozinho caído do cabelo de Deus. Miguilim, que bem ouviu, raciocinou apreciando tudo aquilo, por demais. Uma hora ele falou com o Dito - que Mãe às vezes era a pessoa mais ladina de todas.
(...)
Tudo era bom...

Por João Guimarães Rosa, em 'Manuelzão e Miguilim' - Campo Geral

DIZER: FAZER

DIZER: FAZER

Entre o que vejo e digo,
entre o que digo e calo,
entre o que calo e sonho,
entre o que eu sonho e o que esqueço,

a poesia

se desliza
Entre o sim e o não:
diz
o que calo,
cala,
o que digo,
sonha,
o que esqueço.
Não é um dizer:

é um fazer.

É um fazer
que é um dizer.
A poesia,
se diz e se ouve:

é real.

E apenas digo

é real,

se dissipa.

Assim é mais real?

2


Ideia palpável
palavra

intangível:

a poesia

vai e vem
entre o que é

e o que não é.

Tece reflexos
e os destece.

A poesia
semeia olhos na página,
Semeia palavras nos olhos.

Os olhos falam,

as palavras olham,

Os olhares pensam.

Ouvir

os pensamentos,
ver o que dizemos,
tocar
o corpo da ideia.
Os olhos
se fecham,

as palavras se abrem.

DECIR:HACER


1


Entre lo que veo y digo
,
entre lo que digo y callo,
entre lo que callo y sueño,

entre lo que sueño y olvido,

la poesía.

.......................Se desliza
entre el sí y el no:

.......................dice
lo que callo,
.......................calla
lo que digo,

.......................sueña
lo que olvido.

.......................No es un decir:
es un hacer.

....................... Es un hacer
que es un decir

.......................La poesía
se dice y se oye:

.......................Es real.
Y apenas digo

.......................es real,
se disipa.

.......................¿Así es más real?

2


Idea palpable,
.......................palabra
impalpable:
.......................a poesía
va y viene

.......................entre lo que es
y lo no que es.

.......................Teje reflejos
y los desteje.
....................... La poesía
siembra ojos en la página,

siembra palabras en los ojos.

Los ojos hablan,

.......................las palabras miran,
las miradas piensan.

.......................Oír
los pensamientos,
.......................ver
lo que decimos,
.......................tocar
el cuerpo de la idea.
.......................Los ojos
se cierran,

las palabras se abren.

Por Octavio Paz, en 'Arbol adentro' (Seix Barral - Biblioteca Breve, 1987)
Tradução livre, minha e do Fábio Rodrigues

domingo, 5 de julho de 2009

Inconsciente Coletivo

UMA CARTA EM FORMA DE POESIA

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira,
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-afazeres.

É a cor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tampouco essas palavras-
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Por João Cabral de Melo Neto.
(Retirei de uma apostila didática da escola Vésper,
que cita como fonte a Revista Veja de 14.02.1996)