sexta-feira, 24 de julho de 2009

cor de Rosa (Fragmentos - 14)

Transcreverei abaixo alguns dos melhores trechos de 'Miguilim' (Campo Geral), novela que fala sobre a infância...
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Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo - o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória...
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Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé.
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Os olhos de um verde tão menos vazio - era uma luz dentro de outra, dentro de outra, dentro de outra, até não ter fim.
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A gente - essas tristezas.
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Mãitina estava pondo ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando carinhos (...) O que Mãitina falava: era no atrapalho da linguagem dela, mas tudo de ninar, de querer-bem, Miguilim pegava um sussu de consolo, fechou os olhos para não facear com os dela, mas quisesse, podia adormecer inteiro, não tinha medo nenhum, ela falava a zúo, a zumbo, a linguagem dela era até bonita, ele entendia que era só de algum amor...
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Miguilim, sobre seu irmão, Dito:
Era capaz de brincar com Dito a vida inteira, o Ditinho era a melhor pessoa, de repente, sempre sem desassogo.
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Mas chegava a noite de dormir, Miguilim esperdiçava as coisas todas do dia. O Dito guardou debaixo da cama uma garrafa cheia de vaga-lumes. - "Miguilim, você hoje não tirou a calça." "-Amola não, Dito. Tou cansado." Mas antes tinha carecido de lavar os pés: quem vai se deitar em estado sujo, urubu vem leva.
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Siarlinda contou estórias. Da Moça e da Bicha-Fera, do Papagaio Dourado que era um príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato. Contou estórias de sombração, que eram as melhores, para se estremecer. Miguilim de repente começou a contar estórias titradas da cabeça dele mesmo (...) Mãe disse que Miguilim era muito ladino, depois disse que o Dito também era. Tomezinho desesperou, porque Mãe tinha escapado de falar o nome dele; mas aí Mãe pegou Tomezinho no colo, disse que ele era um fiozinho caído do cabelo de Deus. Miguilim, que bem ouviu, raciocinou apreciando tudo aquilo, por demais. Uma hora ele falou com o Dito - que Mãe às vezes era a pessoa mais ladina de todas.
(...)
Tudo era bom...

Por João Guimarães Rosa, em 'Manuelzão e Miguilim' - Campo Geral

2 comentários:

Tom disse...

Nossa, esse livro é puro encantamento ! Até peguei agora aqui o meu pra escrever algumas das passagens lindas que também rabisquei !!

"Miguilim, isto é o Gerais! Não é bom?" "-Mas o mais bonito que tem mesmo no mundo é boi; é não, Saluz?" "-É sim, Miguilim".
(...) desde muito tempo Miguilim nao senhoreava alegria tao espaçosa.
(...) O dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, algre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, nao se importando demais com coisa nenhuma. (...)
E a parte que ele põe óculos:
Miguilim olhou: nem nao podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente,as coisas, as arvores, as caras das pessoas. Via os graozinhos de areia, a pela da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chao de uma distancia. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...

Anônimo disse...

Onde eu tava com a cabeça quando não grifei esta parte, do 'ser brabo de alegre'?
Como dizem em Pernambuco:
Pronto... Preciso ler Miguilim de novo!

Beijos,
Thai