quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Entre partir e ficar

Entre partir e ficar hesita o dia,
enamorado de sua transparência.

A tarde circular é uma baía:
em seu quieto vai e vem se move o mundo.

Tudo é visível e tudo é ilusório,
tudo está perto e tudo é intocável.

Os papéis, o livro, o vaso, o lápis
repousam à sombra de seus nomes.

Pulsar do tempo que em minha têmpora repete
a mesma e insistente sílaba de sangue.

A luz faz do muro indiferente
Um espectral teatro de reflexos.

No centro de um olho me descubro;
Não me vê, não me vejo em seu olhar.

Dissipa-se o instante. Sem mover-me,
eu permaneço e parto: sou uma pausa.

Octavio Paz
Por Antônio Moura

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Valéry, sobre o prejuízo da modernidade

O tempo livre que tenho em mente não é o lazer tal como normalmente entendido. O lazer aparente ainda permanece conosco, e, de fato, está protegido e propagado por medidas legais e pelo progresso mecânico. As jornadas de trabalho são medidas, e a sua duração em horas, regulada por lei. O que eu digo, porém, é que o nosso ócio interno, algo muito distinto do lazer cronometrado, está desaparecendo. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquela ausência sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam, ao passo que o ser interior é de algum modo liberado de passado e futuro, de um estado de alerta presente, de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Nenhuma preocupação, nenhum amanhã, nenhuma pressão interna, mas uma forma de repouso na ausência, uma vacuidade benéfica que traz a mente de volta à sua verdadeira liberdade, ocupada apenas consigo mesma. Livre de suas obrigações para com o saber prático e desonerada de qualquer preocupação sobre o porvir, ela cria formas tão puras como o cristal. Mas as demandas, a tensão, a pressa da existência moderna perturbam e destroem esse precioso repouso. Olhe para dentro e ao redor de si! O progresso da insônia é notável e anda pari passu com todas as outras modalidades de progresso.
Paul Valéry, em 1935
Por Eduardo Giannetti

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Idéias preciosas de Górgias

O Tratado do Não-Ser organiza-se em três teses: nada existe; mesmo se o ser existisse, então seria incognoscível; e se fosse cognoscível, então este conhecimento do ser seria incomunicável a outrem.
Para Górgias, as coisas não são mais do que não são. Ainda que o ser existisse, não podia ser nem gerado, nem não gerado. Mas, mesmo se um tal ser existisse, as coisas seriam incognoscíveis, pelo menos para nós. As coisas que vemos e ouvimos existem porque são representadas. Ora, pode representar-se o que não existe. Portanto, a representação do ser não nos proporciona o ser e o conhecimento é impossível. Contudo, tomamos conhecimento pela percepção e comunicamo-lo pela linguagem. Mas a linguagem não transmite a experiência pela qual o real se nos dá. Este é incomunicável, porque as coisas não são discursos.
* Górgias - filósofo grego, anterior a Platão, e professor de retórica
Texto extraído do site:

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Meu sonho

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar ?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

Por Cecília Meireles

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

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"...ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada".

Por Clarice Lispector - no conto Preciosidade

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Canção do Berço

O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos
[de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e não é importante, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto do leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).

Por Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

EM VIAGEM

Há um momento que te converte a poeira em comitiva,
tua casa em Paris em local de sacrifício de tuas mãos,
teu negro olho em negríssimo olho.

Há uma granja que guarda uma parelha para teu coração.
Teu cabelo quer voar quando viajas - mas está
[proibido.
Os que permanecem e acenam, não sabem.


Paul Celan
Por Cláudia Cavalcanti, em 'Cristal'

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Dá vontade de se apaixonar...

'O Beijo' - Constantin Brancusi, escultor romeno (1876-1957)
Título da Postagem: Fala da personagem Jessica (Cécile de France), ao ver a escultura de Brancusi, no filme Fauteuils d' Orchestre
(Um Lugar na Platéia, de Danièle Thompson - França, 2005).
PS: Belíssimo fime, de extrema delicadeza. Recomendo!!!

cor de Rosa (Fragmentos - 5)

Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no Vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas, em bichos e nos doidos – não dói sem precisar de ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver a morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há [...]. Se estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor...
João Gumarães - Grande Sertão: Veredas

terça-feira, 5 de agosto de 2008

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O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)
Fernando Pessoa - Alberto Caeiro