sábado, 28 de fevereiro de 2009

Coisas que são - 2

Mas é preciso escolher: viver ou narrar.
(...)
Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável.
(...)
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. (...) Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.
E o relato prossegue às avessas: os intantes deixaram de se empilhar um sobre os outros ao acaso, foram abocanhados, pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede (...). As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo o que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não as escolhia.
Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma viuda que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.
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Por Jean-Paul Sartre, em 'A Náusea'
Tradução: Rita Braga

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