segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A casa materna

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna.

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As coisas vivem como em prece [...]. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente.

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô.

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A casa materna se divide em dois mundos: o térreo onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo, há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roqueford amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta – pois não há lugar mais propício para uma boa ceia noturna. [...] Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe porque queima às vezes uma vela votiva.

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Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

Por Vinícius de Moraes, em ‘Para viver um grande amor’

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