'O impertinente canto de
uma cigarra nunca motivou atenções ao curioso caçador das aves. A melodia, sim,
do rouxinol, sempre despertou o cuidado ao caçador, para lhe aparelhar o laço
[..] O ruído que faz a grande fama também faz com que o grande seja por todos
roído, quando nas asas da fama se vê mais sublimado. Quem em as asas da fama
voa também padece; porque não há asas sem penas [...]. O merecimento sempre foi
mal visto dos invejosos; são os olhos da inveja os que dão quebranto às acções
generosas, que, como de cristal, parece que estalam ao lume dos mesmos olhos
que as vêem. Muito diferentes visos fazem as acções generosas aos olhos da
inveja, conforme a luz a que se opõe, e logo se vêem com agrados ou com
defeitos. O mais excelente quadro posto a uma luz, logo mostra borrões, e visto
à melhor luz, logo descobre pinturas. [...]. As obras de um herói, postas a uma
luz escura da razão e da vontade, são borrões que ofendem; à melhor luz do
entendimento, são primores que admiram'.
Por Padre António Vieira, em "As Sete Propriedades da Alma"
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'Consiste a prudência
em que se temam os resplendores da luz, para que se não cegue aos rigores do
golpe. Não faz mal à embarcação o penedo que sobressai por cima da água; porque
para evitar o perigo sabe o piloto desviar a nau, por ver manifesto o perigo.
Nos penedos que as águas escondem, aí naufraga sempre o baixel; porque cobriu
com capa de cristal uma ruína de penhasco, e os que, navegando pelo mar,
caminham com os olhos nas ondas, facilmente se esvaem, e quanto maior é na
cabeça o esvaecimento, vem a ser mais no coração a fraqueza. Não sabe o que
navega quanto tem vencido de distância, se do mesmo mar não tira os olhos, e só
fazendo balizas na terra sabe o quanto no mar caminham'.
Por Padre António Vieira,em "As Sete Propriedades da
Alma"
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'[...] por isso o
Sol é o melhor dos planetas, porque sabe acomodar suas luzes à dureza do
diamante, como à brandura da cera; e os mesmos raios que infundem a dureza no
bronze, se acomodam aos melindres de uma flor. Prudência é o saber acomodar,
para melhor luzir e viver.
Brilhar com demasiado luzimento nas acções, mais estorva
os aplausos do que os granjeia; porque, na opinião de Séneca, não sabem os
homens aplaudir senão aquilo que só podem imitar. Com ser a luz do Sol o mais
agradável objecto à vista, contudo, se é grande o excesso de seus ardores, o
mesmo que é agrado da vista, chega a ser perturbação dos olhos'.
Por Padre António Vieira, em "As Sete Propriedades da
Alma"
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'Todos os
sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O Ouvido ouve, o
Gosto gosta, o Olfacto cheira, o Tacto apalpa, só os olhos têm dois ofícios:
Ver e Chorar. Estes serão os dois pólos do nosso discurso.
Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber
por que ajuntou a Natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista; e por
que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver? O ver é a acção mais
alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto,
porque o sabor de todos os gostos é o ver; pelo contrário, o chorar é o
estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido
do sentimento. Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos
tão contrários, ver e chorar? A razão e a experiência é esta. Ajuntou a
Natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são consequência da vista;
ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar.
Sabeis porque choram os olhos? Porque vêem'.
Por Padre António Vieira, em "Sermões"
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