quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Uma luz do chão
Não, não há nenhuma poética universal: universal é a poesia,
a vida mesma. [...] Universal é o quintal da casa, cheio de plantas [...] E a
história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes
presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas;
nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas,
nos namoros de esquina. Disso eu quis fazer minha poesia [...] porque o canto
não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se nosso canto arrasta
consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.
A literatura, que me prometia uma resposta para o enigma da
vida, lembrava-me a morte, com seu mundo de letras pretas impressas em páginas
amarelecidas. Compreendi que a poesia devia captar a força e a vibração da vida
ou não teria sentido escrever. Nem viver. Mergulhei assim numa aventura cujas conseqüências
eram imprevisíveis.
[...] Sei que para o impasse da poesia e do homem não há
soluções definitivas: pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao
sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer. Uma luz que não nos é
dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.
O poeta fala
dos outros homens e pelos outros homens, mas só na medida em que fala de si
mesmo, só na medida em que se confunde com os demais. [...] É da própria
natureza da arte romper os limites da solidão, ainda que seja abismando-se
nela, transcendendo-a por baixo.
[...]
“O poema, ao
ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja apenas o próprio poeta. Se o
poeta, depois de fazer um poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem
sentido.”
[...]
Foi no ato
de ler e não no ato de escrever que a minha visão da literatura subitamente se
configurou. Já não pude, a partir daquele instante, ser a mesma pessoa.
Por Ferreira
Gullar em ‘Sobre poesia (Uma luz do chão)'. José Olympio Editora.
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