terça-feira, 17 de março de 2009

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...
— O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona

.........................................................[de água,
Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva,
E a vasta humilhação de existir um amor taciturno —
Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria —
Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque

...........................................................[a alma —
A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

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Meus versos são a minha impotência.
O que não consigo, escrevo-o;
E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

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A costureira estúpida violada por sedução,
O marçano rato preso sempre pelo rabo,
O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
— Não distingo, não louvo, não (...) —

São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes.
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Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

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Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso —
Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.
Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
Bebedeira da servilidade altruísta,
Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar

................................................... [esquerdo...
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Por Álvaro de Campos - Fernando Pessoa,
em 'Poesia de Álvaro de Campos'.

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